Tags

, , , ,

Depois de um belo de um sumiço lendo livros, trabalhando e cuidando da saúde, eis-me de volta. Nesse meio-tempo também passei alguns dias agradáveis em São Paulo, dias de chuva, frio, cafés e livrarias, encarando as ruas cheias da cidade com úberes e noventaenoves, motoristas que pouco ou nada disseram, o que considerei não só apropriado como um alívio, idas ao cinema para ver filmes que poucos veem, ao teatro ainda cheio e belo mesmo numa noite gelada. São Paulo tem um monte de problemas, isso é fato, mas estar lá me dá esperança de que nem tudo está perdido.

E tem as livrarias, pequenas, médias, a que fui obstinadamente, pequenas em bairros mais modestos e ruas residenciais, nem tão pequenas no entorno do gigante de pedra da Paulista, na Zaccara em Perdizes onde falei de livros e discos com o dono, em todos comprei livros, trouxe pra casa e os leio sempre e na medida do possível. Sim, sou um turista de livrarias, trouxe poemas de Drummond a quem tenho dedicado leitura atenta e sem o compromisso de análise, A máquina do mundo me fascinando sempre, especialmente porque foi o texto que analisei em minha prova de mestrado, tudo isso me traz as melhores lembranças.

E, claro, trouxe Clarice para ler, um que ainda não tinha lido, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, esse eu li de um fôlego só, num final de semana, me encantando com a jornada de Lóri rumo ao autoconhecimento e à descoberta do corpo e da alma, do desejo e da angústia, dessa descida ao Hades às avessas com Ulisses. Trata-se de uma descoberta intelectual com Ulisses e seu racionalismo mas também do amor pleno que ele e Loreley, amantes que já tiveram outros amantes, encontram ao se tornarem mais que amantes, tornarem-se cúmplices. Drummond já disse em um poema que amantes são dois inimigos. Em Clarice, amantes são aliados, numa lealdade que não se resume à presença mas ao respeito ao silêncio e ao afastamento.

Trata-se de um romance curto e, a meu ver, menos denso do que outros que li dela como A paixão segundo G.H. ou mesmo A hora da estrela, O lustre e A maçã no escuro, esse o mais complexo que li dela. Mas ainda é uma prosa poética, cheia de silêncios, como em uma sinfonia, um livro fascinante que se inicia com uma vírgula e termina em dois pontos, um contínuo narrativo não apenas de conteúdo mas de forma, ousadias estilíticas que somente ela era capaz.

E há, finalmente, o intercâmbio entre textos, algo que sempre me fascina em razão da variedade de suportes usados pela autora ao longo de sua carreira. Clarice não foi poeta mas sua prosa era mais que suficientemente contruída com argamassa lírica; ela foi, contudo, cronista no Jornal do Brasil e das melhores que tivemos. Dessa fase da autora tenho A descoberta do mundo, outro livro essencial para compreender o modo de produção de Clarice. Haveria muito para falar sobre a Clarice Lispector cronista mas isso fica para outro texto. Fato é que, lendo uma aprendizagem identifiquei um trecho de uma de minhas crônicas preferidas de Clarice, O milagre das folhas, no meio da narrativa e como se fosse uma fala-pensamento de Lóri. Vou pesquisar e vejo que a crônica saiu originalmente no Jornal do Brasil de 04/01/1969. O romance foi lançado também em 1969. Como já estivesse escrevendo o livro, é possível concluir que o trecho do romance tenha sido retirado para compor a crônica? É uma possibilidade e não seria a primeira vez, acho que já comentei aqui que alguns dos contos dela viraram crônicas posteriormente, com mundança de título e supressão de alguns trechos ou alteração de personagens. Trata-se de um tema fascinante para mim, do diálogo entre suportes (o romance e a crônica, o livro e o jornal) e de como uma autora tão peculiar quanto Clarice trabalhou entre esses dois mundos. É a prosa poética de Clarice Lispector indo para o jornal que, no dia seguinte, serve pra embrulhar peixe ou vai forrar gaiola.

Mas falemos disso outra hora, há a vida, há os livros, há a escrita de Clarice que transita entre tantos mundos, da vida e da morte, do amor e do desejo, do som e do silêncio, e por isso ler tanto propicia descobertas e viagens, a livros e livrarias, a cinemas e teatros, a amigas e amantes, a quem amamos e a quem sequer desconfiamos da existência.

Para finalizar, eis o trecho concidente mas não por coincidência, pois dizem que na vida não há coincidências:

Milagres, não. Mas as coincidências. Vivia de coincidências, vivia de linhas que incidiam e se cruzavam e, no cruzamento, formavam um leve e insgtantâneo ponto, tão leve e instantâneo que era mais feito de segredo. Mal falasse das coincidências, e já estaria falando em nada.

Mas possuia um milagre, sim. O milagre das folhas. Estava andando na rua e do vendo lhe caíra exatamente nos cabelos: a incidência de linhas de milhões de folhas transformada em uma que caía, a de milhões de pessoas a incidência de reduzi-lo a ela. Isso lhe acontecia tantas vezes que passou a se considerar modestamente a escolhida das folhas. Com gestos furtivos tirara a folha dos cabelos e guardara-a na bolsa, com o mais diminuto diamante.

Até que um dia, abrindo a bolsa, encontrara entre os mil objetos que sempre carregava a folha seca, engelhada e morta. Jogara-a fora: não lhe interessava o fetiche morto como lembrança. E também porque sabia que novas folhas iriam coincidir com ela.

Um dia uma folha que caíra batera-lhe nos cílios. Achou então Deus de uma grande delicadeza.

(Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, Ed. Rocco, p. 106/107)

Em tempo, foi lançada uma versão cinematográfica baseada nessa obra incrível de Clarice que vale a pena procurar para assistir, com a maravilhosa Simone Spoladore no papel de Lori. Vamos ler livros, ver bons filmes, vamos nos abrir para o mundo e buscar novos prazeres. Boas leituras a todos.