Por que escrevemos? Dentre tantas respostas possíveis, acredito que seja porque queremos ser lidos. Não escrevemos apenas para nós mesmos, mas para todo aquele que queira nos ler. Podemos até falar sozinhos e o fazemos com maior frequência do que gostaríamos de admitir mas estamos sempre dizendo algo para sermos ouvidos. Não queremos estar sozinhos, queremos um leitor, queremos um ouvinte, queremos um interlocutor.
Iniciei o post de hoje com essa divagação justamente para falar do autor indicado de hoje deste blog: o argentino Ricardo Piglia foi um dos maiores autores dessa literatura tão rica que rendeu nomes como Borges e Cortázar, só para ficar em alguns exemplos. Mas apesar da admiração expressa de Piglia pelo clássico Borges e pelo revolucionário Cortázar, a direção da prosa deste foi bem diversa. Dois bons exemplos desse rumo encontram-se nos livros que são aqui indicados: o mais conhecido Respiração artificial e o mais recente e delicioso Anos de formação: os diários de Emílio Renzi, duas obras imperdíveis que tratam, ao fim e ao cabo, de um mesmo tema: a necessidade que sempre temos de dizer algo a alguém, a espera de toda uma vida por um interlocutor que realmente nos ouça, ou nos leia.
Por que nos dedicamos a escrever, afinal? Seguimos nessa trilha, por qual motivo? Bom, porque antes lemos…Não importa a causa, claro, importam as consequências. Muita gente deve se arrepender disso, a começar por mim, mas em qualquer bar da cidade, em qualquer McDonald’s tem um trouxa que, apesar de tudo, quer escrever…Na realidade, não é que ele queira escrever, quer é ser escritor e quer ser lido. (Os diários de Emílio Renzi)
No foco de ambas as narrativas encontra-se o alter ego do escritor, o professor de literatura e também escritor (ou aspirante a escritor) Emílio Renzi. Observador arguto, cínico, nos diários que representam a gênese do personagem já mais maduro de respiração artificial, Renzi aparece como o jovem que estuda literatura e filosofia com ardor, envolve-se na política para pouco depois desencantar-se até ser demitido da universidade onde dava aula, envolve-se com (muitas) mulheres sem nunca fixar-se com nenhuma e, acima de tudo, exercita o diário como aquilo que realmente o diário é: a conversa com um interlocutor imaginário. Repleto de citações, dicas de livros e filmes que passaram por Renzi, é um livro ágil que mostra o caminho percorrido por Renzi até a personagem que apareceria num livro cronologicamente anterior, o clássico Respiração artificial.
E nesse livro que resume toda a obra de Piglia um ainda jovem Emílio Renzi dialoga através de cartas com o tio Marcelo Maggi e parte para um encontro ao estilo Becketiano, em uma narrativa que explora diversos tipos de comunicação nas quais o interlocutor ou, pelo menos, o interlocutor principal não se encontra presente: as cartas, os diários e mesmo as longas conversas com um interlocutor conhecido daquele que se quer realmente encontrar. Escrever e ler, neste caso mas também na literatura como um todo, traduz-se na tentativa incessante de dizer algo a quem não está presente.
Duas coisas, principalmente, chamaram a minha atenção em Respiração artificial : o uso incessante do verbo dizer como tentativa deliberada e chamativa de costura do tecido narrativo e, ainda, a aproximação que Tardewski, um dos interlocutores de Renzi enquanto espera por seu tio que nunca chega, a aproximação entre os pensamentos de Kafka e Hitler em um suposto encontro havido entre os dois na Praga de 1910, entre o escritor ainda pouco conhecido e o aspirante a artista frustrado que se tornaria a personificação do mal. Aqui vemos que escrever, que dizer é sempre necessário pois somos seres que construímos nossa realidade dizendo, mas também devemos ter em mente que não se diz sem esperar qualquer consequência.
O gênio de Kafka está no fato de ter compreendido que se aquelas palavras podiam ser ditas, então é porque podiam ser realizadas. Ostara, deusa germânica da primavera. Conte-me tudo do principio ao fim. Porque o que o senhor planeja é tão atroz que ao ouvi-lo só posso dissimular o meu terror. As palavras preparam o caminho, são precursoras dos atos por vir, as faíscas dos incêndios futuros. Ou será que já não estava sentado sobre o barril de pólvora que transformou seu desejo em fato?
Ele sabe ouvir, ele é aquele que sabe ouvir. (Respiração artificial)
Kafka é aquele que sabia ouvir, o jovem Adolf queria dizer e encontrou seu público ao ditar Mein Kampf para um país arrasado por uma guerra, uma população humilhada e que buscava novamente erguer-se, a qualquer custo. Piglia enlaça narrativas e modos de narrar diversos para deixar clara para cada um que o lê que as palavras são ainda o que há de mais importante e que devemos manuseá-las com cuidado. Cada palavra pode ser a última, cada escrito e cada diálogo pode ser definitivo.
Vamos ler, portanto, pois Ricardo Piglia é um autor que tem muito dizer. Recomendo o trajeto acidental que fiz: leia primeiro os Diários de Emílio Renzi e depois passe para Respiração artificial para compreender melhor a trajetória do da persona literária deste que é um dos maiores autores argentinos de todos os tempos. Boas leituras!