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Camus, Clarice Lispector, Conto, Hilda Hilst, literatura, Lucia Berlin, Manual da faxineira, poesia
Por definição e até mesmo por costume, aquela coisa viscosa e dolorosa que se gruda na gente ao longo do tempo, por tudo isso e muito mais sou um homem que faz planos. Pequenos planos, admito, aqueles do dia, da semana, do trabalho, o diminuto arquiteto da minha vida, montando os instantes como pecinhas de LEGO a fim de que tudo não se torne um caos.
Mas é de caos que vivemos e por isso agradeço todos os dias pela literatura em minha vida, pois ela me lembra de que a vida é uma sucessão infinita de caos que, de tão amontoados uns nos outros, parecem algo com sentido, ordenado. Nossos planos não fazem sentido porque são bons ou porque somos espertos. Fazem sentido porque não nos afastamos o suficiente para olhar como não fazem sentido algum. A literatura, portanto, ao menos a boa literatura, nos mostra que somos feitos de vazios que nos dão a ilusória sensação de completude.
Sinto isso quando leio Clarice e sua prosa lirica cheia de um mal-estar palpável, quando leio Camus e constato o absurdo e o vazio da vida e suas questões mesquinhas que nos movem, quando leio Hilda Hilst e sua poesia que flerta com o abismo e o nada, a morte e o sexo a uma pulsão de distância.
Tenho lido o Manual da faxineira de Lucia Berlin, uma série de contos e leitura mais que recomendada. Muito se tem escrito sobre esse livro sensacional e vou privar vocês de qualquer análise, tem gente muito melhor do que eu tratando do assunto. Mas uma coisa que não posso deixar de comentar é como os finais dos contos desses livros me desconcertam. Há livros com inícios arrebatadores e, como uma amiga me disse certa vez, inícios são os anzóis que o escritor lança para fisgar o leitor até o fim. Mas a arte de um final na literatura e especialmente no conto, caso desse livro, é algo que me fascina. Não se trata da arte de finalizar uma partida como no xadrez, onde cada movimento, desde o início, leva a uma conclusão sutil, implacável e bela pela precisão matemática selvagem, como acontecia de eu me assombrar com os finais espetaculares de Raul Capablanca nos meus tempos de aspirante a enxadrista.
Não, com Lucia Berlin os finais são sempre desconcertantes porque conduzem quem lê a um vazio, a uma lacuna, são prosaicos às vezes, chocantes sempre. Você termina e, como eu, no começo vai pensar: “mas termina aqui? Não continua?” e vai ficar incomodado, como eu fiquei. Aí você avança nos demais contos, um melhor que o outro e, então, você se dá conta de que não está olhando longe o suficiente. Que os finais desconcertantes estão o tempo todo em nossa vida e que apenas não percebemos. Porque na vida, como em um sonho, só vemos com mais clareza o meio, vivemos em media res. E O manual da faxineira nos mostra isso o tempo todo e, se em um primeiro momento nos incomodamos e temos vontade de deixar pra lá esse livro, por outro a curiosidade vence e percebemos, aturdidos, que estamos vivendo como na ficção, sem lembrar do inicio e sem nos darmos conta do fim iminente.
Mas vamos embora, cuidar do nosso pequeno caos de cada dia, enquanto lemos bons livros como o que acabei de recomendar, claro.