Não sei bem se é o fim de um período de turbulenta escrita na minha vida, ou se é a verborragia excessiva, rasa e cansativa das redes sociais, mas ando sem grande vontade de escrever. E um bichinho inquieto fica aqui, arranhando a parede, passando as unhas afiadas na lousa e fazendo aquele guincho horrível que sempre me aterrorizou antes de acontecer. E aqui estamos. Sabiam, colegas, que Cervantes e Shakespeare estão mortos?
Pois é, há 400 anos, é o que noticiam jornais, blogs, o feicebuqui e outros vastos territórios da citação não literária, aquela baseada no que nunca lemos, ou seja, quase tudo. Essa internet, esse vasto oceano no qual andamos com água pelas canelas. Mas vamos ao que interessa.
Pouco li de Shakespeare, vi mais peças e filmes, meu predileto é Macbeth, não li Dom Quixote e esse é um dos desafios que ainda não encarei, junto com Moby Dick e Guerra e paz. Mas essa é outra história, daquelas que a gente nao fica espalhando para os amigos e só apresenta em blogs de pouca audiência, justamente aquela dos livros que a gente finge que leu para parecer culto.
E isso leva ao assunto desse humilde post, pois apesar de admitir humilhado que não li esses importantes autores, posso dizer que li Harold Bloom, que leu esses caras e muitos mais, e apenas por esse motivo respeito demais o cara. De tanta leitura resultou livros importantes desse grande crítico e intelectual, de uma profundidade que não se vê mais hoje em dia. Dentre estes, um eu tenho e já li, embora nesse arroubo de sincericidio também possa dizer que não li inteiro, mas li boa parte e, acredito, o suficiente. O Cânone Ocidental é um tijolaço, e Bloom não se faz de rogado: analisa uma penca de autores, desde os ja citados Shakespeareare (para ele o centro do cânone) e Cervantes, mas também Dante Alighieri, Chaucer, Milton, Goethe, dentre tantos outros.
O que? Ah, desculpem, divaguei de novo, o assunto, claro. Bloom fala de um conceito interessante nesse livro, que me parece muito atual. Ele chama de ansiedade da influência, que é basicamente a expressão criada pelo autor para designar o exercício de atração e repulsa que compõe o cânone. E cânone, no caso, são autores como os acima designados, que se apoiaram em componentes anteriores do mesmo cânone e os sufocaram, apagando as pegadas com suas pisadas no terreno da literatura, das artes em geral.
Assim, a crítica cria o cânone e o exercício da critica é sempre elitista. Logo, quem define o que é a boa palavra, a grande literatura, não está imbuído exatamente de um espírito, digamos, popular. E Bloom afirma: “A crítica cultural é mais uma triste ciência social, mas a crítica literária,como uma arte, sempre foi e sempre será um fenômeno elitista. Foi um erro acreditar que a crítica literária podia tornar-se uma base para a educação democrática ou para melhorias na sociedade.”
Pessoalmente, partilho desse ceticismo de Bloom. E não é apenas a crítica literária que sofre desse distúrbio de ansiedade, pois crítica literária, de fato, ao menos no Brasil atual, é algo inexistente. Essa ansiedade da influência está presente em tudo o que se escreve, nesses tempos de verborragia virtual. Escreve-se muito e mal, busca-se incessantemente a opinião definitiva, todos acham que possuem a chave da verdade ao escreverem e apresentarem suas opiniões ou posições, por mais absurdas que sejam. A ansiedade em sufocar a opinião alheia; a ansiedade em ter a palavra definitiva, em aniquilar o pensamento divergente. Enquanto a grande literatura, como a produzida por Shakespeare e Cervantes, tira o chão e nos deixa cheios de dúvidas, buscamos ansiosamente a certeza e a chancela em nossas opiniões.
Enfim, Shakespeare e Cervantes estão mortos há 400 anos. Mas essa ansiedade em ser o cânone na vida, em ser reconhecido por uma elite das palavras e opiniões, essa está mais viva que nunca.
Escrevi besteira, me perdi? Desculpem, nunca serei cânone. Pelo menos não sofro de qualquer ansiedade.