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Desde minha última postagem eu vinha planejando escrever algo sobre os livros que li pois apesar do trabalho em ritmo acelerado, dos afazeres de casa e das provas de meu filho tenho, sim, lido muito, especialmente à noite e até que o sono me vença. Não é o ideal mas é o que temos para o momento, então sigamos. E aqui vai uma dica de quem já leu muito na vida: se puderem tenham um e-reader à mão, deixem de lado o preconceito com o livro digital, leio tanto os livros de papel quanto os virtuais e ter um bom aparelho desses me dá acesso a muitas obras às quais não teria acesso se tivesse que compra-los fisicamente. O meu, por exemplo, tem acesso a um dicionário e pesquisa o termo na wikipedia quando necessário, o que já se mostrou de enorme ajuda na leitura.

Mas vamos ao que interessa: pensei em falar do último Murakami que li, Sul da fronteira, oeste do sol, um delicioso conto expandido de amor, encontros e desencontros, ilusões e rancores, com toques de fantástico e sobrenatural e um final horripilante, mais as inúmeras referências pop que o leitor mais resistente poderá encontrar na monumental 1Q84, a tour de force maior do autor japonês. Murakami é muito zoado, como diria meu filho, por sempre estar nas listas de favoritos ao Nobel de literatura e nunca vencer, uma espécie de Leonardo Di Caprio que escreve romances, mas não importa, penso nos livros dele como uma versão literária e japonesa dos filmes de Tarantino, com toques do fantástico de Stephen King. Ah, e em qualquer livro de Murakami vale a pena prestar atenção nas músicas que as personagens ouvem e marcam suas vidas. Dá pra montar uma playlist com elas, vou reler alguns desses livros só para fazer uma.

Mas vamos ao que interessa mais estritamente, fechando o cículo desse texto e chegando ao título de hoje: de um fôlego (longo, eu diria, mas necessário pelo pouco tempo e tamanho dos livros) terminei a leitura de três livros do chileno Roberto Bolaño, um dos grandes escritores latino-americanos de todos os tempos, a meu ver: comecei pelo gigantesco 2666, o testamento literário de Bolaño que, ao que pesquisei, viria a morrer um ano antes do lançamento do livro, escrito quando o escritor já tinha consciência de sua saúde debilitada. Dividido em cinco partes, o livro se inicia e encerra em torno de um escritor, Benno Von Archimboldi, passando pelo humor ferino que Bolaño dispensa a pesquisadores de literatura em contraste com o absoluto desencanto do escritor com o mundo e seu desapego da vaidade do mundo da literatura. Archimboldi, enfim, foi um grande escritor porque se importou menos com a literatura do que com a vida.

Também passei por Os detetives selvagens, que apesar do nome não tem detetives mas poetas, os arautos do real-visceralismo, corrente poética cujos poemas o leitor jamais conhece ao longo do livro, como se os poetas escrevessem apenas para si, publicando entre si e em revistas literárias obscuras de circulação restrita. Em seus relatos, diversos pontos de vista são mostrados, vidas se cruzam e se afastam, destinos se colidem com violência, sexo, literatura e um enorme vazio. O eixo desses relatos sempre passa pelos maiores nome do real-visceralismo, Arturo Belano (um alter ego do próprio Bolaño) e seu total desapego à vida (como Archimboldi) e Ulisses Lima. Tanto neste como no último livro citado, a narrativa é fragmentada e errática, não há realismo mágico ou qualquer das marcas da uma corrente da literatura latino-americana, mas há ecos de Borges e Cortázar, dois dos escritores que Bolaño sempre citou como referências em sua obra.

Já em A literatura nazista na América, nos deparamos com um romance em forma de glossário com o relato das vidas de escritores e intelectuais fictícios alinhados ao nazismo, com direito à escritora que, quando criança, foi ao colo de Hitler e, anos mais tarde ainda guardava a foto com ternura e saudade e escrever o texto Com Hitler fui feliz, bem como muitos outros exemplos de escritores, poetas, intelectuais de toda ordem que desfilam diante dos olhos do petrificado leitor com um museu de aberrações, gente que acreditava na virtude do fascismo e na violência e purificação da raça. Os relatos e descrições, aparentemente soltos, ligam-se uns aos outros pela sombra assustadora que projetam sobre a nossa realidade. Bolaño exergava muito longe.

Mas, afinal, pergunta-se o impaciente leitor já tamborilando os dedos de impaciência, os poucos que chegaram até esse ponto da minha ladainha, o que o deserto de Sonora tem com isso? Bem, ao menos nos dois primeiros livros de Bolaño que mencionei, 2666 e Os detetives selvagens, o deserto de Sonora é a personagem onipresente, o espaço que se corporifica em plena leitura. Crimes, fugas, morte e despespero mas também fuga como redenção e a esperança de um novo começo, tudo isto aparece no deserto e nas cidades que se plantam teimosamente em torno de um território que parece um triângulo da bermudas de areia, uma terra de ninguém, um episódio de Além da imaginação na vida real (ou literária). Nada, em todas as páginas que li, absolutamente nada me chamou mais a atenção do que esse deserto, um tema que me fascina não é de hoje.

E em 2666 há uma das partes que se chama a parte dos crimes, em que são narrados diversos assassinatos de mulheres, cometidos de maneira brutal, de forma serial e narrados com frieza jornalística de modo a angustiar o leitor que espera que o assassino seja capturado a cada mulher encontrada no deserto ou nos arredores, em cidades que parecem abraçadas a esse espaço de vastidão, silêncio e morte. Há policiais em ação, eles interrogam, pesquisam, perseguem. Um deserto, contudo, parece se interpor entre eles e todas as mulheres assassinadas, que parecem formar um muro de cadáveres bem em frente ao leitor. Não há solução para uma vida no deserto.

Já em Os detetives selvagens é para o deserto de sonora que o narrador Garcia Madero foge com seus amigos para fugir de bandidos que querem a sua pele e lá o deserto serve de abrigo e também de constante perigo até o confronto final, como num velho faoreste, um Três homens em conflito no deserto de Sonora. Na hora, me ocorre que Sergio Leone teria sido um bom diretor para filmes baseados em Bolaño. Mas é um pensamento solto e que se perde nos ventos que varrem todos os desertos.

Enfim, impossível não pensar que o deserto de Sonora, essa região inóspita entre Estados Unidos e México, esse território onde tudo parece não ter dono, onde a vida parece pouco importar diante do mundo que lá se mostra, que este espaço que parece outra dimensão ali está, como personagem, para aceitar tudo o que não está no lugar, no mundo ou na liiteratura. Para alguém que, como eu, ama séries como Breaking Bad e Better Call Saul, por exemplo, a referência é incontornável: os piores crimes e as maiores descobertas são feitas nesse deserto que, ao final, com Bolaño e com Walter White e Saul Goodman, parece bem menos vazio do que aparenta. É o sertão Roseano de Bolaño, é o mundo.

Leiam esses belos livros, ouçam as músicas com Murakami, andem pelo deserto de Sonora com Bolaño e tenham uma boa viagem. Boas leituras a todos!