Viagens, prazeres, descobertas

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Depois de um belo de um sumiço lendo livros, trabalhando e cuidando da saúde, eis-me de volta. Nesse meio-tempo também passei alguns dias agradáveis em São Paulo, dias de chuva, frio, cafés e livrarias, encarando as ruas cheias da cidade com úberes e noventaenoves, motoristas que pouco ou nada disseram, o que considerei não só apropriado como um alívio, idas ao cinema para ver filmes que poucos veem, ao teatro ainda cheio e belo mesmo numa noite gelada. São Paulo tem um monte de problemas, isso é fato, mas estar lá me dá esperança de que nem tudo está perdido.

E tem as livrarias, pequenas, médias, a que fui obstinadamente, pequenas em bairros mais modestos e ruas residenciais, nem tão pequenas no entorno do gigante de pedra da Paulista, na Zaccara em Perdizes onde falei de livros e discos com o dono, em todos comprei livros, trouxe pra casa e os leio sempre e na medida do possível. Sim, sou um turista de livrarias, trouxe poemas de Drummond a quem tenho dedicado leitura atenta e sem o compromisso de análise, A máquina do mundo me fascinando sempre, especialmente porque foi o texto que analisei em minha prova de mestrado, tudo isso me traz as melhores lembranças.

E, claro, trouxe Clarice para ler, um que ainda não tinha lido, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, esse eu li de um fôlego só, num final de semana, me encantando com a jornada de Lóri rumo ao autoconhecimento e à descoberta do corpo e da alma, do desejo e da angústia, dessa descida ao Hades às avessas com Ulisses. Trata-se de uma descoberta intelectual com Ulisses e seu racionalismo mas também do amor pleno que ele e Loreley, amantes que já tiveram outros amantes, encontram ao se tornarem mais que amantes, tornarem-se cúmplices. Drummond já disse em um poema que amantes são dois inimigos. Em Clarice, amantes são aliados, numa lealdade que não se resume à presença mas ao respeito ao silêncio e ao afastamento.

Trata-se de um romance curto e, a meu ver, menos denso do que outros que li dela como A paixão segundo G.H. ou mesmo A hora da estrela, O lustre e A maçã no escuro, esse o mais complexo que li dela. Mas ainda é uma prosa poética, cheia de silêncios, como em uma sinfonia, um livro fascinante que se inicia com uma vírgula e termina em dois pontos, um contínuo narrativo não apenas de conteúdo mas de forma, ousadias estilíticas que somente ela era capaz.

E há, finalmente, o intercâmbio entre textos, algo que sempre me fascina em razão da variedade de suportes usados pela autora ao longo de sua carreira. Clarice não foi poeta mas sua prosa era mais que suficientemente contruída com argamassa lírica; ela foi, contudo, cronista no Jornal do Brasil e das melhores que tivemos. Dessa fase da autora tenho A descoberta do mundo, outro livro essencial para compreender o modo de produção de Clarice. Haveria muito para falar sobre a Clarice Lispector cronista mas isso fica para outro texto. Fato é que, lendo uma aprendizagem identifiquei um trecho de uma de minhas crônicas preferidas de Clarice, O milagre das folhas, no meio da narrativa e como se fosse uma fala-pensamento de Lóri. Vou pesquisar e vejo que a crônica saiu originalmente no Jornal do Brasil de 04/01/1969. O romance foi lançado também em 1969. Como já estivesse escrevendo o livro, é possível concluir que o trecho do romance tenha sido retirado para compor a crônica? É uma possibilidade e não seria a primeira vez, acho que já comentei aqui que alguns dos contos dela viraram crônicas posteriormente, com mundança de título e supressão de alguns trechos ou alteração de personagens. Trata-se de um tema fascinante para mim, do diálogo entre suportes (o romance e a crônica, o livro e o jornal) e de como uma autora tão peculiar quanto Clarice trabalhou entre esses dois mundos. É a prosa poética de Clarice Lispector indo para o jornal que, no dia seguinte, serve pra embrulhar peixe ou vai forrar gaiola.

Mas falemos disso outra hora, há a vida, há os livros, há a escrita de Clarice que transita entre tantos mundos, da vida e da morte, do amor e do desejo, do som e do silêncio, e por isso ler tanto propicia descobertas e viagens, a livros e livrarias, a cinemas e teatros, a amigas e amantes, a quem amamos e a quem sequer desconfiamos da existência.

Para finalizar, eis o trecho concidente mas não por coincidência, pois dizem que na vida não há coincidências:

Milagres, não. Mas as coincidências. Vivia de coincidências, vivia de linhas que incidiam e se cruzavam e, no cruzamento, formavam um leve e insgtantâneo ponto, tão leve e instantâneo que era mais feito de segredo. Mal falasse das coincidências, e já estaria falando em nada.

Mas possuia um milagre, sim. O milagre das folhas. Estava andando na rua e do vendo lhe caíra exatamente nos cabelos: a incidência de linhas de milhões de folhas transformada em uma que caía, a de milhões de pessoas a incidência de reduzi-lo a ela. Isso lhe acontecia tantas vezes que passou a se considerar modestamente a escolhida das folhas. Com gestos furtivos tirara a folha dos cabelos e guardara-a na bolsa, com o mais diminuto diamante.

Até que um dia, abrindo a bolsa, encontrara entre os mil objetos que sempre carregava a folha seca, engelhada e morta. Jogara-a fora: não lhe interessava o fetiche morto como lembrança. E também porque sabia que novas folhas iriam coincidir com ela.

Um dia uma folha que caíra batera-lhe nos cílios. Achou então Deus de uma grande delicadeza.

(Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, Ed. Rocco, p. 106/107)

Em tempo, foi lançada uma versão cinematográfica baseada nessa obra incrível de Clarice que vale a pena procurar para assistir, com a maravilhosa Simone Spoladore no papel de Lori. Vamos ler livros, ver bons filmes, vamos nos abrir para o mundo e buscar novos prazeres. Boas leituras a todos.

Os desertos de sonora

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Desde minha última postagem eu vinha planejando escrever algo sobre os livros que li pois apesar do trabalho em ritmo acelerado, dos afazeres de casa e das provas de meu filho tenho, sim, lido muito, especialmente à noite e até que o sono me vença. Não é o ideal mas é o que temos para o momento, então sigamos. E aqui vai uma dica de quem já leu muito na vida: se puderem tenham um e-reader à mão, deixem de lado o preconceito com o livro digital, leio tanto os livros de papel quanto os virtuais e ter um bom aparelho desses me dá acesso a muitas obras às quais não teria acesso se tivesse que compra-los fisicamente. O meu, por exemplo, tem acesso a um dicionário e pesquisa o termo na wikipedia quando necessário, o que já se mostrou de enorme ajuda na leitura.

Mas vamos ao que interessa: pensei em falar do último Murakami que li, Sul da fronteira, oeste do sol, um delicioso conto expandido de amor, encontros e desencontros, ilusões e rancores, com toques de fantástico e sobrenatural e um final horripilante, mais as inúmeras referências pop que o leitor mais resistente poderá encontrar na monumental 1Q84, a tour de force maior do autor japonês. Murakami é muito zoado, como diria meu filho, por sempre estar nas listas de favoritos ao Nobel de literatura e nunca vencer, uma espécie de Leonardo Di Caprio que escreve romances, mas não importa, penso nos livros dele como uma versão literária e japonesa dos filmes de Tarantino, com toques do fantástico de Stephen King. Ah, e em qualquer livro de Murakami vale a pena prestar atenção nas músicas que as personagens ouvem e marcam suas vidas. Dá pra montar uma playlist com elas, vou reler alguns desses livros só para fazer uma.

Mas vamos ao que interessa mais estritamente, fechando o cículo desse texto e chegando ao título de hoje: de um fôlego (longo, eu diria, mas necessário pelo pouco tempo e tamanho dos livros) terminei a leitura de três livros do chileno Roberto Bolaño, um dos grandes escritores latino-americanos de todos os tempos, a meu ver: comecei pelo gigantesco 2666, o testamento literário de Bolaño que, ao que pesquisei, viria a morrer um ano antes do lançamento do livro, escrito quando o escritor já tinha consciência de sua saúde debilitada. Dividido em cinco partes, o livro se inicia e encerra em torno de um escritor, Benno Von Archimboldi, passando pelo humor ferino que Bolaño dispensa a pesquisadores de literatura em contraste com o absoluto desencanto do escritor com o mundo e seu desapego da vaidade do mundo da literatura. Archimboldi, enfim, foi um grande escritor porque se importou menos com a literatura do que com a vida.

Também passei por Os detetives selvagens, que apesar do nome não tem detetives mas poetas, os arautos do real-visceralismo, corrente poética cujos poemas o leitor jamais conhece ao longo do livro, como se os poetas escrevessem apenas para si, publicando entre si e em revistas literárias obscuras de circulação restrita. Em seus relatos, diversos pontos de vista são mostrados, vidas se cruzam e se afastam, destinos se colidem com violência, sexo, literatura e um enorme vazio. O eixo desses relatos sempre passa pelos maiores nome do real-visceralismo, Arturo Belano (um alter ego do próprio Bolaño) e seu total desapego à vida (como Archimboldi) e Ulisses Lima. Tanto neste como no último livro citado, a narrativa é fragmentada e errática, não há realismo mágico ou qualquer das marcas da uma corrente da literatura latino-americana, mas há ecos de Borges e Cortázar, dois dos escritores que Bolaño sempre citou como referências em sua obra.

Já em A literatura nazista na América, nos deparamos com um romance em forma de glossário com o relato das vidas de escritores e intelectuais fictícios alinhados ao nazismo, com direito à escritora que, quando criança, foi ao colo de Hitler e, anos mais tarde ainda guardava a foto com ternura e saudade e escrever o texto Com Hitler fui feliz, bem como muitos outros exemplos de escritores, poetas, intelectuais de toda ordem que desfilam diante dos olhos do petrificado leitor com um museu de aberrações, gente que acreditava na virtude do fascismo e na violência e purificação da raça. Os relatos e descrições, aparentemente soltos, ligam-se uns aos outros pela sombra assustadora que projetam sobre a nossa realidade. Bolaño exergava muito longe.

Mas, afinal, pergunta-se o impaciente leitor já tamborilando os dedos de impaciência, os poucos que chegaram até esse ponto da minha ladainha, o que o deserto de Sonora tem com isso? Bem, ao menos nos dois primeiros livros de Bolaño que mencionei, 2666 e Os detetives selvagens, o deserto de Sonora é a personagem onipresente, o espaço que se corporifica em plena leitura. Crimes, fugas, morte e despespero mas também fuga como redenção e a esperança de um novo começo, tudo isto aparece no deserto e nas cidades que se plantam teimosamente em torno de um território que parece um triângulo da bermudas de areia, uma terra de ninguém, um episódio de Além da imaginação na vida real (ou literária). Nada, em todas as páginas que li, absolutamente nada me chamou mais a atenção do que esse deserto, um tema que me fascina não é de hoje.

E em 2666 há uma das partes que se chama a parte dos crimes, em que são narrados diversos assassinatos de mulheres, cometidos de maneira brutal, de forma serial e narrados com frieza jornalística de modo a angustiar o leitor que espera que o assassino seja capturado a cada mulher encontrada no deserto ou nos arredores, em cidades que parecem abraçadas a esse espaço de vastidão, silêncio e morte. Há policiais em ação, eles interrogam, pesquisam, perseguem. Um deserto, contudo, parece se interpor entre eles e todas as mulheres assassinadas, que parecem formar um muro de cadáveres bem em frente ao leitor. Não há solução para uma vida no deserto.

Já em Os detetives selvagens é para o deserto de sonora que o narrador Garcia Madero foge com seus amigos para fugir de bandidos que querem a sua pele e lá o deserto serve de abrigo e também de constante perigo até o confronto final, como num velho faoreste, um Três homens em conflito no deserto de Sonora. Na hora, me ocorre que Sergio Leone teria sido um bom diretor para filmes baseados em Bolaño. Mas é um pensamento solto e que se perde nos ventos que varrem todos os desertos.

Enfim, impossível não pensar que o deserto de Sonora, essa região inóspita entre Estados Unidos e México, esse território onde tudo parece não ter dono, onde a vida parece pouco importar diante do mundo que lá se mostra, que este espaço que parece outra dimensão ali está, como personagem, para aceitar tudo o que não está no lugar, no mundo ou na liiteratura. Para alguém que, como eu, ama séries como Breaking Bad e Better Call Saul, por exemplo, a referência é incontornável: os piores crimes e as maiores descobertas são feitas nesse deserto que, ao final, com Bolaño e com Walter White e Saul Goodman, parece bem menos vazio do que aparenta. É o sertão Roseano de Bolaño, é o mundo.

Leiam esses belos livros, ouçam as músicas com Murakami, andem pelo deserto de Sonora com Bolaño e tenham uma boa viagem. Boas leituras a todos!

Meus heróis não se lembram mais de mim

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Na minha adolescência e juventude, nos idos dos anos 80 do século passado, ainda morando em São Paulo, eu ostentava um tripé de paixões que formaram, para o bem ou para o mal, o que sou hoje: minhas paixões pela literatura, pelo cinema e pelos quadrinhos.

E tinha meus ídolos, é claro. Na literatura autores como J.D. Salinger e sua revolta no campo de centeio, Kurt Vonnegut, os romances de mistério de Agatha Christie que eu lia de um fôlego só, um misto de rebeldia com a busca do racional. Érico Veríssimo com Olhai os lírios do campo e seu romantismo meloso como dos melodramas de Otto Preminger, de Mário de Andrade e Amar, verbo intransitivo, para mim sempre o melhor do criador de Macunaíma.

No cinema aquele garoto que comprava revistas Set aos montes e colava os cartazes no quarto tinha fascinação por uma nova era de filmes estranhos e fascinantes ao mesmo tempo, desde Uma noite alucinante de Sam Raimi e seu terrir insano e gosmento, passando por um de meus ídolos, o canandense David Cronemberg e seus filmes surreais, assisti A mosca duas vezes, só no cinema, me encolhendo na cadeira ao final da sessão para ficar para a próxima (sim, nessa época ainda dava pra fazer isso) e o magnífico Gêmeos: mórbida semelhança devo ter visto uma infinidade de vezes. Depois vieram Blade runner, E.T. que me fascinou quando eu ainda era criança, Indiana Jones e tantos outros. E também os filmes de ação com heróis falíveis, que faziam bobagem e se machucavam, mas ainda tinham forças pra fazer o que achavam certo. Dentre estes sempre me fascinou John MacClane, encarnado por Bruce Willis na série de filmes da franquia Duro de matar. Aquele cara que eu via antes na TV numa série de detetives cômica de repente tinha virado um astro de ação. Atores como Willis e Mel Gibson da série Máquina mortífera também eram meus herois.

E nos quadrinhos que eu amava e colecionava a ponto de ter caixas de revistas guardadas (que depois vendi a preço de banana por não ter onde colocar quando me mudei para o interior e, também, por medo das traças), entre HQs de X-Men, Vingadores, Batman e Liga da Justiça, eu cultivava uma grande paixão, daquelas à primeira vista: a revista Circo. Capitaneada pelos maiores gênios do quadrinho brasileiro (Laerte, Luis Gê, Glauco e Angeli), essa revista durou apenas oito edições extraordinárias que eu comprava e levava na mochila para ler nos intervalos das aulas em meu colégio em Osasco (eu morava em São Paulo mas coladinho na fronteira com Osasco, de onde posso afirmar que sempre transitei, por assim dizer, entre dois mundos, todos os dias).

Capa da Circo, revista que revolucionou a HQ brazuca

E não foi só pois a Circo gerou lindos filhotes como Os piratas do Tietê da Laerte, o Geraldão do Glauco e, principalmente, a irreverente Chiclete com banana de Angeli e seus inesquecíveis personagens como os Skrotinhos, Meia-oito, Bob Cuspe e a melhor de todos, Rê Bordosa, aquela que teve até uma morte muito doida apresentada aos leitores. Essa era a melhor literatura de São Paulo. Não haveria TV Pirata sem esses gênios, Glauco foi roteirista daquele que ainda é o melhor e mais inteligente programa de humor já produzido por aqui, nosso SNL, nosso Seinfeld.

Na Chiclete com banana Angeli já previa que a vaca estava indo para o brejo

E eu, que queria ser punk como Bob Cuspe, fui comunista de fachada como Meia-oito, mas sempre bem-educado pela minha mãe acredito ter experimentado poucos momentos Skrotinhos na minha vida e não cheguei nem perto de drogas como o Doy Jorge do Glauco ou das bebedeiras homéricas de Rê Bordosa, acabei mesmo me tornando rato de biblioteca e faculdade e depois funcionário público e blogueiro amador. Mas as marcas que estes maravilhosos quadrinhos me deixaram ainda estão aqui, comigo.

Envelhecer, porém, não é fácil. Pois é amadurecer, algo que considero supervalorizado. Pois tudo isso implica em descobrir, dia após dia, que nossos heróis não são eternos, que as obras até ficam mas que eles adoecem, morrem ou se retiram para a coxia, resolvem sair do palco e, nessa hora, olhamos em volta e nos damos conta de como esse teatro é grande e fica vazio sem eles.

Escrevo esse texto motivado pela notícia de hoje na Folha de que Angeli vai se aposentar, forçadamente, por conta do diagnóstico de afasia, uma condição neurológica que implica na perda da capacidade de se expressar, lembrar e, até mesmo, falar. Dias atrás foi Bruce Willis. Imagino esses dois ídolos meus, durões cada qual à sua maneira, mergulhando lentamente na escuridão do esquecimento, da arte, da obra de cada um, da família, da vida. Fica parecendo uma morte em vida pra mim. E me deixa triste pois nossos heróis, esses homens falíveis que, como eu, fizeram besteiras na vida mas venceram no final e viveram para contar, esses homens que tanto me deram quando garoto, um de meus muitos pais na arte e na vida, que eles vão me esquecer, vão esquecer a todos.

Parafraseando o que já disse antes, não sei quando, do mesmo modo que se Machado de Assis tivesse escrito em inglês ele seria maior que Henry James, se Angeli tivesse nascido na gringa seu nome seria mais conhecido do que o de Robert Crumb, que também era gênio e foi ídolo do brasileiro. Mas tudo isso é conjectura, conversa fiada e acredito que Angeli teria me olhado torto com esse comentário, aquele olhar parecido com Bruce Willis, de cara durão mas sensível, amigável mas irônico.

Angeli, meu ídolo, boa aposentadoria, mestre, se cuide e melhoras. Se você esquecer de mim, saiba que não tem importância, eu não esqueço dos meus heróis.

De como não sabemos amar, mas amamos

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Sexta da paixão, para mim, é sinônimo de bacalhau, batatas, vinho verde ou branco e leituras para colocar em dia, ou apostar nas leituras da hora. Enquanto cunhados e sobrinhos não chegam para encher a casa de sons, fiz café, coloquei a mesa enquanto a casa ainda dormia e mergulhei em leituras, olhando as roseiras que explodem em flores na frente de casa e sentindo o vento frio da primeira manhã de outono dessas paragens, aliviando o calor implacável dos últimos tempos.

Segui lendo Bolaño e seus detetives selvagens, já na reta final. Depois de 2666, monumental, caudaloso, me espanto em ver que estou terminando mais um interminável livro desse autor chileno e suas intermináveis vozes narrativas. Há desertos, vastas fronteiras, vozes e mais vozes que se perdem na imensidão encadeando fatos, juntando pontas para depois desatá-las, um tear em moto-perpétuo que faz e ao mesmo tempo desfaz seu trabalho. Ainda escreverei melhor sobre Bolaño mas não hoje.

Arrumei a casa para as visitas que estão para chegar, bacalhau e batatas no forno, vinho verde gelado, tiro fotos das flores de manjericão e hortelã, bom sinal, de que ainda há vida, cor e cheiros em meio a tanta escuridão. Resolvo pegar meu livro de contos de Clarice Lispector e mergulho na leitura de A legião estrangeira.

Sobre esse conto escrevo mais em outra hora, no meu evangelho clariceano, ainda há muito a fazer. Mas fiquei pensando que sempre que leio Clarice fico ensimesmado, cogitando dentro de mim do quanto é possível encerrar em tão poucas linhas. Há um mundo em cada parágrafo escrito por Clarice, algo que sempre me fascina mas também me entristece um pouco, jamais vou escrever com tal intensidade. Nesse caso, resta ler e trazer um pouco mais do mundo para dentro de mim.

Nesse texto que também dá nome a um dos livros de contos da autora, seguimos Ofélia e seu crescimento às avessas: a narradora testemunha o nascimento de uma criança, a descoberta do amor pela criança e de que como, a partir de algo tão pequeno, um mundo se abre e, ao final, descobrimos que não sabemos lidar com o amor. Mais não digo, leiam o conto, como disse volto em outro momento para escrever só sobre ele.

Mas o pensamento que realmente me ocorreu quando teminei a leitura foi o de que Clarice nos mostra, não apenas nesse conto mas em muitos outros, o quanto amamos mal. Pelo menos no meu caso posso dizer, não me falta amor, tenho amores, talvez menos do que gostaria mas os tenho e são meus. Mas não levo jeito, até tento mas admito que amo desajeitadamente, amo mal, meu amor é cheio de silêncios que parecem dizer o contrário e de palavras mal colocadas, que confundem e, não raro, irritam quem eu devia agradar. Quando amo fico com a impressão de que me movo como quem anda numa loja de cristais, um terror infantil no coração, antevendo as taças que vou derrubar e não poderei consertar mais.

E, como Ofélia, às vezes não compreendo o que amo e a vastidão desse sentimento faz com que eu mate, ao menos metaforicamente, o que amo. Não é uma morte bonita, como toda morte pode ser suja e, invariavelmente, é solitária. Mas é necessária para que eu continue a me mover aos trancos e trombadas para continuar amando, para crescer, não raro voltando à infância e seu reino de terror do desconhecido.

Mas já escrevi demais, é páscoa, nesse período que simboliza a transição da morte ao retorno ou à vida eterna só posso desejar boas leituras, bons vinhos e que o amor, ainda que desajeitado, esteja sempre a nosso lado, abrindo nossos olhos ao mundo e nos libertando da prisão de uma vida sem amor.

Boa páscoa, boas leituras a todos.

Límpida

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Fico sabendo que Lygia Fagundes Telles nos deixou, ao menos fisicamente, pois suas obras marvilhosas sempre estarão conosco. Frase pronta, bem sei, e acredito que a própria Lygia torceria o nariz para um início de texto assim, me fulminando com aquele olhar felino e me dizendo silenciosamente que eu poderia ter começado melhor.

Peço desculpas pois não sou Lygia, como não sou Clarice, minhas referências maiores nesse universo de nossa literatura, as melhores mulheres e, portanto, melhores seres pensantes e escritoras. Quase um século de uma vida intensa e transbordante, poucos podem dizer o mesmo próximo do fim de uma jornada.

Das minhas leituras de Lygia, para além dos romances como As meninas ou Selva de Pedra, ficam em minha memória os contos, mostrando um domínio da narrativa curta poucas vezes visto em nossa literatura, deste país ou de outros, comparável somente a Clarice Lispector, Katherine Mansfield ou Alice Munro, dentre outras. Mas Clarice, como já comentei tantas vezes aqui, preenchia toda a existência com suas narrativas curtas, uma versão menor de seus densos, mais que densos romances. E amarei Clarice para sempre por isso, pois toda a vida cabe em suas páginas. Mas a vida não é feita apenas dos espaços preenchidos, ela também se mostra nos espaços entre as palavras, o silêncio que faz parte da música. E Lygia era assim para mim, em cada leitura eu via a vida e a arte se manifestando na ausência com a narrativa que preenche todas as lacunas, subitamente.

Li toda a coletânea de contos e, a cada texto, me surpreendi com a complexidade que brotava da narrativa quase singela, das personagens que escondiam um mundo atrás de atos simples e pensamentos nem sempre claros. Eram estes os espaços que o leitor preenchia com sua compreensão e sua alma. Um mergulho em águas límpidas que escondiam correntezas traiçoeiras, uma Circe nos prendendo em sua ilha repleta de almas que não mais buscam uma saída, apenas se deixam levar pela corrente.

Lygia que foi escritora, mãe, que amou e foi amada, que ganhou alegrias e suportou tristezas, que escreveu e foi reconhecida e revenciada tanto em vida quanto agora, em que sua vida nos deixou mas não sem antes nos legar livros belos, palavras que andam e saltam como felinos, elegantemente e que, ao fim, olham para trás para um último encontro de olhares antes de saltar pela janela para um longo, longo passeio pelos telhados.

Leiam Lygia, lembrem-se de Lygia, cristalina Lygia, límpida Lygia.

Obrigado por tudo, mestra.

Para entender a guerra, para conhecer as pessoas

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Como entender uma guerra? Mais ainda, como entender e, entendendo, identificar-se com o sofrimento de quem vê pessoas queridas morrerem bem à sua frente, com a angústia de quem precisa deixar toda uma vida para trás só para se manter vivo e proteger os seus? Como era antes eu não tenho ceteza mas posso dizer de hoje: nossa comoção, em geral, dura o tempo de uma rápida leitura das notícias, o tempo suficiente para escrever um tuíte ou uma postagem no instagram, para depois voltarmos a nossos afazeres, temos um casa pra limpar, contas a pagar, filhos pra cuidar e um almoço para fazer enquanto a morte e seu circo de horrores do outro lado do mundo não vem nos assombrar.

Mas é possível entender o sofrimento de pessoas que sequer conhecemos sem entender o sofrimento de cada um? Para mim, talvez essa seja a chave do enigma: a guerrra vista pelos livros de história como um jogo de políticos irresponsáveis e militares insensíveis pouco nos diz, é preciso compreender a guerra como o sofrimento de cada um, como se fosse uma corrente de sofrimento e dor que percorreria o mundo até voltar a nós. E todo o terror de matar outros seres humanos e morrer por coisas intangíveis seria, finalmente, compreendido, como uma epifania, a máquina do mundo de Drummond se abrindo para a nossa consciência.

Isso não vai acontecer, contudo, não aconteceu antes quando vivíamos mais instruídos e atentos, não será agora nessa época em que as pessoas são especialistas em nada e opinam sobre tudo e em que a atenção do ser humano dura menos do que um minuto que vai acontecer. Mas nem tudo está perdido ainda, há quem queira compreender o que, de fato, é a guerra e porque temos que entender isso para que possamos nos dar conta de que a guerra, qualquer uma, nada tem de heroico ou belo, é um lamaçal de sangue e vísceras, de vidas destruídas e ódio concentrado. Nada há de belo na guerra mas lembrei de três filmes e, especialmente, um livro, que podem lançar uma luz em cabeças obscuras.

Em “Glória feita de sangue” (1957), um Stanley Kubrick que ainda não era o titã cinematográfico que depois se revelaria faz um filme poderoso e um libelo contra a inutilidade da guerra e a confirmação do velho ditado de que a guerra seria a política por outros meios. Kirk Douglas encarna o Coronel Dax que, a contragosto e por pressão de superiores, ordena um ataque a uma trincheira alemã na primeira guerra mundial. Quando a incursão termina em um massacre, uma corte marcial é formada para punir três soldados e manter as aparências, poupando os verdadeiros responsáveis. Um filmaço que vale por uma aula de geopolítica e de como decisões estúpidas tomadas por nababos fardados podem custar vidas que eles sequer conhecem e com as quais não se importam.

Já em “Nascido para matar” (Full metal jacket, 1987), o mesmo Kubrick mergulha na mais emblemática e cinematográfica das guerras, a do Vietnã, um atoleiro de onde, até hoje, os americanos não saíram, vide a saída desastrada do Afeganistão há pouco tempo. Neste filme que pode ser dividido em duas partes, na primeira conhecemos o soldado Davis (Matthew Modine), chamado de Joker, participando do treinamento para embarcar rumo ao inferno da guerra mas conhecendo o inferno já no treinamento sob o comando o sádico sargento Hartman (uma atuação devastadora de R. Lee Ermey) com um desfecho trágico para ele e o soldado Lawrence (outra atuação espetacular do jovem Vincent D’Onofrio, que os mais novos conhecem como o Rei do Crime da série Demolidor). Na segunda parte, Joker conhece os horrores e a inutilidade da guerra como jornalista e soldado, avançando em meio a um cenário que faz lembrar uma Divina Comédia sem purgatório ou céu, só a morte e o sofrimento da guerra se espalham pelo caminho. Chocante do primeiro ao último minuto, um dos grandes filmes de um dos maiores diretores de todos os tempos, alguém que desumanizava seus personagens até nos mostrar o quanto é essencial ser humano.

Finalmente, em “Apocalipse now” (Francis Ford Coppola,1979) a guerrra (no caso novamente a do Vietnã) se mostra como é mais possível que a vejamos, com um distanciamento quase onírico, com o capitão Willard (Martin Sheen) nos guiando uma caminhada lisérgica em que a violência é vista com o horror de um pesadelo em um parque de diversões macabro, tudo isto para embrenhar-se na selva a mando de seus superiores para localizar a matar o Coronel Kurtz (Marlon Brando), cuja versão oficial é de que teria enlouquecido e se embrenhado nas selvas do Camboja, onde comandaria um grupo de fanáticos. Livremente baseado em “Coração das trevas”, o magnífico livro de Joseph Conrad, é um filme que mostra a guerra como loucura, uma geradora de fanatismos e morte, até mesmo no coração da mais obscura selva. Tão bom quanto ver esse filme fantástico é se inteirar da produção, certamente uma das mais tumultuadas da história do cinema. Tudo que poderia dar errado, deu, tempestades que devastaram o local de filmagens, problemas com as autoridades locais, com os atores (Brando é um capítulo à parte com seu comportamento insuportável e megalomaníaco) e muitas outras coisas que quase enlouquecerram Coppola e o levaram à falência. Tudo isso está no documentário “Hearts os Darkness: a filmmaker appocalipse”, de Eleanor Coppola, disponível no Belas Artes a la Carte.

Mas voltemos às minhas divagações do início para falar do livro que vou indicar. Mais que ler livros de história e ver noticiários, acredito que compreender uma guerra e seu horror é aproximar-se das pessoas afetadas não apenas pela guerra, mas pelo curso da história, que anda como um gigante pisando desajeitadamente e esmagando quem fica no caminho. No caso da Rússia, para fechar o foco, não dá para entender o que está acontecendo pensando somente em Putin, em somente um personagem. É preciso, a meu ver, levar em conta que a Rússia já foi mais, já foi a poderosa União Soviética e que muita gente que lá vivia nunca conheceu outra vida que não fosse o modo de viver comunista, militarizado ao extremo e no cotidiano de cada um, é algo martelado nos ossos e que não se vai de uma hora para outra. Ocorre que o comunismo e a União Soviética desapareceram de uma dia para outro, as pessoas dormiram sovietes comunistas e acordaram russos em transição rápida para a economia de mercado. E para compreender como isso se deu livros de história não bastam. É preciso ouvir as vozes daqueles que se adaptaram e daqueles que nunca aceitaram as mudanças.

No início, pareceu algo realmente novo e bom mas o tempo mostrou que os russos, hoje, são mais pobres e menos poderosos que seus antepassados soviéticos (vide artigo na Folha de hoje, que pode ser lido aqui). Putin apenas sentiu o momento, canalizou a insatisfação, deu a partida da guerra e, como bom tirano, persegue quem se opõe à guerra como traidor da pátria. E como foi possível chegar a esse ponto é o que se vê ao ler “O fim do homem soviético” de Svetlana Aléksievitch, autora cuja leitura de todos os livros é mais que recomendada. A nobel de literatura colhe depoimentos no calor dos fatos, pouco tempo depois da implosão da Unão Soviética e o que salta aos olhos é um povo que, de uma hora pra outra, foi simplesmente despejado de um modo de vida e que, em geral, não sabiam o que fazer de agora em diante. O que eles viviam sob o regime comunista não era primoroso, era espartano, com poucos recursos e muito policiamento ideológico, perseguições e prisões na calada da noite ou mesmo à luz do dia. Mas esta era a vida deles e eles não conheciam outra. Muitos se suicidaram, outros parecem mortos e vida em seus relatos.

Porque é que há no livro tansos relatos de suicídios, e não dos soviéticos comuns, com biografias soviéticas comuns? Afinal de contas as pessoas também se suicidam por amor, por velhice, sem mais nem menos, por interesse, pelo desejo de descobrir o segredo da morte…Procurei aqueles em que cresceu firmemente a ideia, que a interiorizaram de um modo impossível de erradicar – o Estado tornou-se o seu cosmos, substituiu tudo, até a sua própria vida. Não conseguiram sair da grande história, despedir-se dela, ser felizes de outro modo. Mergulhar…perder-se na existência privada, como acontece atualmente, em que o pequeno se tornou grande. O homem quer apenas viver, sem uma grande ideia.

O que emerge dos relatos lidos nesse que é, para mim, o melhor livro da autora bielorrussa, junto com “Vozes de Chernobil” é de que muitos não aceitaram a transição para o liberalismo, alguns se adaptaram e enriqueceram (partes deles os oligarcas hoje enquadrados por Putin e alvo de sanções pleo mundo após o início da guerra) e outros, finalmente, embarcaram porque não havia outra opção. A vida cotidiana, miúda, no entanto, pode não ser suficiente e o mandatário russo evoca a grande Rússia do tempo dos sovietes para impulsionar popularidade e apoio em uma guerra, ainda que a população, hoje, esteja mais pobre. É preciso ouvir as pessoas, ler os seus relatos e o livro de Svetlana é um testemunho valioso de um tempo já extinto mas que parece ainda ter alguns espasmos nos dias atuais.

Entender o horror da guerra, entender as pessoas e porque a guerra, às vezes, parece um mundo melhor que a vida que levam, talvez estes filmes e este livro ajudem a entender. E, entendendo, talvez sejamos menos intolerantes e precipitados em nossos julgamentos. A quem se aventurar, bons filmes e boa leitura!

A propósito, o primeiro filme citado vc encontra no Prime Video da amazon, o segundo no HBO MAX e o terceiro no Belas Artes à la carte e no youtube para locação, baratinho.

Por hora é só, volto quando der na telha, faça leitura, não faça guerra, continue a usar máscara pois a pandemia não termina porque político quer se vacine, deixe de ser tapado e pare de olhar para o próprio umbigo. Até a próxima.

Dia da mulher não é pra ser feliz, dia da mulher é pra pensar.

Voltando do meu exílio para o primeiro post de 2022 pra dizer que não dá pra desejar feliz dia das mulheres quando tantas ainda são humilhadas, menosprezadas, agredidas ou mortas só por serem mulheres.

Não dá pra desejar um feliz dia a quem é assediada e tratada como uma boneca inflável em ônibus e trens da vida, a quem é acusada de ter colaborado para ter ocorrido assédio, estupro ou mesmo um assovio indecente na rua por causa “do jeito que ela estava vestida”.

Não dá pra desejar um feliz dia a todas mortas brutalmente por maridos e companheiros, estupradas por pais, tios e primos, por colegas de trabalho ou chefes que ganham o dobro pra trabalhar a metade do que elas trabalham e, ainda, serem demitidas pelo “risco” de engravidarem e prejudicar a empresa.

Não dá pra desejar um dia feliz a quem não pode dispor do próprio corpo como bem entender por conta de leis escritas por homens brancos cidadãos de bem, a quem é tratada como histérica quando se revela enquanto o homem é elogiado pela energia e iniciativa, não dá pra desejar um feliz dia a quem é tratada por puta quando deseja enquanto o homem é encorajado e elogiado pelo tesão como macho alfa da matilha.

Por esses e outros motivos não desejo um feliz dia das mulheres mas um dia de pensar e refletir sobre o que nós, homens, podemos fazer para não matarmos tantos corpos e sonhos femininos, para sermos menos injustos, cruéis e desiguais. O dia é das mulheres, o questionamento deve ser de todos.

A mulher é uma construção – Angélica Freitas – um útero é do tamanho de um punho

Que a mulher seja menos conjunto habitacional e mais uma casa de tijolos à vista, dona de si e do mundo, como deveria ser.