E vamos em frente, com mais um capítulo desse nosso evangelho à gauche, com um post dedicados aos próximos dois contos de Clarice, curtos mas cheios de referências interessantes. Estou falando de Eu e Jimmy e História interrompida.
Nesse ponto, lembro a meus pacientes leitores que minha análise é quase sempre baseada em meras impressões minhas com algumas raras pesquisas, aqui não me atrevo a aprofundar análises, mas adianto que cada conto de Clarice possui muita fortuna crítica, quem quiser se aprofundar vai encontrar material, então aventure-se!
Mas vamos aos contos? Entendo que Eu e Jimmy e História interrompida são dois contos de transição, estórias curtas com características próprias mas que se propagam posteriormente a outros contos mais densos de Clarice como Cartas a Hermengardo e, mesmo, Amor, com a diferença que nestes contos a autora expande muitas vezes o que, nos contos aqui comentados, mostram-se apenas como um vislumbre.
Em Eu e Jimmy aparece um tema recorrente em Clarice, ou seja, as contradições do amor, bem como a luta da mulher para sair da submissão. Interessante notar como a visão da narradora vai mudando conforme vai aumentando seus conhecimentos e seus olhos vão se abrindo. Aqui não há grande angústia ou uma epifania, como costuma ocorrer aos personagens clariceanos, mas uma gradual descoberta e um abertura suave das próprias possibilidades. Ver o mundo, primeiro, pelo olhar em Jimmy para depois pelo olhar em contraposição ao de seu amado.
No início a narradora afirma candidamente Que se duas pessoas se gostam nada há a fazer senão amarem-se simplesmente. Mas também a narradora lembra das amarras do casamento e da união a outra pessoa, ao afirmar:
Mamãe antes de casar, segundo tia Emília, era um foguete, uma ruiva tempestuosa, com pensamentos próprios sobre liberdade e igualdade das mulheres. Mas veio papai, muito sério e alto, com pensamentos próprios também sobre…liberdade e igualdade das mulheres!
Mas o conhecimento também liberta. E Jimmy, que a ajudava a estudar para os exames que a narradora faria, a vê também distanciar-se e libertar-se dela justamente nesse momento. O conhecimento e a sua aquisição são o ponto de inflexão, pois a narradora afirma que, a partir desse ponto, Aqui começa a história propriamente dita.
O contato com o examinador e professor de belos olhos e o contato com novas teorias (beleza e conhecimento, como o Hegel citado pela narradora) abrem os olhos da personagem para a superficialidade de Jimmy e para ele resta somente debater-se diante desse distanciamento e da desconcertante confissão da narradora:
Expliquei-lhe então que estava apaixonadíssima por D…, e, numa maravilhosa inspiração (lamentei que o examinadora não me ouvisse), disse-lhe que, no caso, eu não podia unir os contraditórios, fazendo a síntese hegeliana. Inútil a digressão.
__ E eu?
Irritei-me.
Não sei, respondi, chutando uma pedrinha imaginária e pensando: ora, arranje-se! Nós somos simples animais.
Esse momento de rompimento marca também uma marcação de território entre o conhecimento que a narradora descobre e que leva uma desconcertante simplicidade e a opacidade de Jimmy, o conhecimento hegeliano que é um passo à frente em relação à teoria kantiana da primazia do conhecimento como definidor de nossa existência. Dito de outro modo: o verdadeiro conhecimento apaixona, simplifica e liberta. Clarice era avessa a qualquer tipo de pedantismo intelectual (é famosa a aversão dela a congressos, palestras e todo tipo de debate literário) mas aqui ela faz alusões diretas a Hegel e, por oposição, a Kant, oposição esta figurada nas personagens principais do conto.
Já História interrompida trabalha em outra sintonia, um conto repleto de melancolia, tristeza, a vida em cacos.
A narradora desse conto fala de sua paixão por W…, alto, belo e introspectivo, para quem a autora falava quase sempre como em um monólogo. Ele via sua vida como uma série de momentos desconexos, horas perdidas, nas palavras dele. Ela via este modo de ver a vida como algo belo e, na verdade, cheio de unidade:
W…era um artista, vinha-me à mente. Para desculpa-lo, respondia-me: destrói-se tudo em torno de si, mas a si próprio e aos desejos (nós temos um corpo) não se consegue destruir. Pura desculpa.
Aqui, ao contrário do conto anterior, a visão mais lúcida está ao lado de W… e não da narradora. Ela é carregada de ilusões e subjetivismo, em um paralelo, inclusive, com o fazer literário, em um tom que pode parecer de autocrítica:
Voltei-me para dentro, amolecida pela calma daqueles momentos. Queria dizer-lhe:
__ Parece-me que essa é a primeira das horas, mas que depois dela mais nenhuma se seguirá.
Mentalmente ouvi-o responder:
__ Isso é apenas uma tendência sentimental indefinível, misturada à literatura da moda, muito subjetivista. Daí essa confusão de sentimentos, que não tem verdadeiramente um conteúdo próprio, a não ser o seu estado psicológico, muito comum em moças solteiras da sua idade…
Veja-se o tom de autocritica ao inverter os papéis em relação ao conto anterior: agora a subjetividade prejudica o julgamento, fazendo com que a narradora imagine a resposta pouco amistosa do objeto de paixão.
No decorrer do conto, porém, esses papéis vão se invertendo e a narradora passa por um processo de descoberta, de autoconhecimento, que se inicia, justamente, pela tomada de consciência desse processo. Ela afirma que envereda pelo atalho mais comprido e percebe que nasce em si o conceito de ideia, que aqui representa o abrir de olhos para o mundo e sua complexidade. Assim ela compara o nascer de uma ideia, a tomada de consciência em paralelo com o ver a luz pela primeira vez:
O nascimento de uma ideia é precedido por uma longa gestação, por um processo inconsciente para o gestante. Assim explico a minha falta de apetite no jantar magnífico, minha insônia agitada numa cama de lençóis frescos, após um dia atarefado. Às duas da madrugada, enfim, nasceu ela, a ideia.
Com o nascimento da ideia, ela se desenvolve e dá lugar à consciência, tanto do mundo que a cerca quanto do real intento do ser amado, é a ideia chegando à maturidade:
Com efeito, homens como W… passam a vida à procura da verdade, entram pelos labirintos mais estreitos, ceifam e destroem metade do mundo sob o pretexto de que cortam os erros, mas quando a verdade lhes surge diante dos olhos é sempre inopinadamente.
A seguir, a disposição da narradora em casar-se e a expectativa em comunicar esta disposição a W… fazem com que ela entre numa espécie de êxtase, um estado de epifania comum às personagens clariceanas, o vislumbre de uma verdade totalmente subjetiva e tão íntima que aproxima consciente e inconsciente, algo próximo de um delírio:
A continuar naquela febre, eu correria o risco de receber o risco de receber W… com gritos nervosos: ” W… vamos nos casar imediatamente, imediatamente.” Peguei numa folha de papel e enchi-a de alto a baixo: ” Eternidade, Vida. Mundo. Deus. Eternidade. Vida. Mundo. Deus. Eternidade…” Essas palavras matavam o sentido de muitos de meus sentimentos e deixavam-me fria por umas semanas, tão minúscula eu me descobria.
Inevitável comparar a epifania, o êxtase do conhecimento, a jornada da descoberta da ideia, com o prazer sexual que leva ao delírio e que pode também fazer com que se sinta menor após a grandiosidade do momento, a melancolia que sucede ao orgasmo. Ao fim, a descoberta do destino de W… desfaz toda a beleza da ideia e esta entra em seu estagio de maturidade, que a autora vê como uma conformidade com as convenções sociais que permitem que a ideia apenas sobreviva mas não mais brilhe como antes.
E repentinamente a historia se partiu. Nem teve ao menos um fim suave. Terminou com a brusquidão e a falta de lógica de uma bofetada em pleno rosto.
Aqui, quando a ideia se conforme e entra na maturidade convencional, a história termina, ou seja, é uma morte da ideia em vida. E cessa, também, a busca pela ” Eternidade. Vida. Mundo. Deus.”
Como afirmado no começo desse post, são dois contos curtos, transitórios, mas que desenvolvem temas muito caros a Clarice e que vão repercutir posteriormente em outros escritos dessa grande autora. Espero que tenham gostado das análises, voltamos da próxima vez com A fuga.
Ave, Clarice.