Memória do dia
29 segunda-feira mar 2021
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in10 quarta-feira mar 2021
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No prefácio ao livro Quase uma arte, o professor e poeta Marcos Siscar pergunta com precisão cirúrgica: como reconhecer um poema quando este se oferece?
Tomo para mim essa pergunta e sigo minha própria resposta, pois não há resposta, ao menos uma pronta para uma questão tão complexa formulada em tão poucas palavras. Pois é essa complexidade em tão pouco espaço de folha, ou de tela, que me dizem, logo de saída, que o poema está ali, à minha espera. Mas não apenas isso, pois a poesia, ao menos para mim, não é espaço de conciliação ou harmonia, a poesia vive da tensão, da fricção, da acomodação das placas tectônicas da linguagem. A poesia, a grande poesia, te faz sentir que muita energia foi liberada com um mínimo movimento, que prédios balançaram, alguns ruíram, que pessoas desapareceram para nunca mais que outras surgiram, assim, do nada, tudo isso feito de uma maneira delicada, como a educação pela pedra.
Pois ler esse preciso e precioso livro da carioca Paula Glenadel, pessoas, coisas, animais, se entrelaçam e se fundem, friccionam e se afastam, convivem em universos distintos numa poética feita de palavras precisas com ecos de Ana Cristina Cesar mas também com elementos que a tornam única. Paula nos mostra que vivemos entre o lobo e o cão:
Andar como se diz/ no fio da navalha/entre cão e lobo/ o não e o sim entrelaçados
E, no mesmo poema, afirmar que não há paz no amor:
não há paz/só guerra à guerra/amor.
somos passageiros e intensos, somos vísceras e coração, inaprovietáveis para a eternidade, ainda assim, amamos como guerreamos e não poderia ser de outro modo. Estamos vivos no agora, é isso que a grande poesia nos diz.
E há, ainda, a redução do nada ao belo, ao que pode nos deixar sem fôlego, como no estupendo Não:
não narrarei a história/não descreverei o cenário/não contarei o tesouro de sensações/não desfiarei causas/nem nada que ofenda o acaso/o deus dos encontros
Ao acaso, deus dos encontros, deixo minha dica de leitura, encontrem na poesia o que nos faz transbordar e, ao mesmo tempo, encontrar a acomodação de nossas placas em meio ao terremoto e sua grande energia que faz nossos prédios ruírem e novas pessoas surgirem dos escombros. Somos feitos dessa energia, caminhamos entre ruínas e, ainda assim, não deixamos de ter nossa beleza. Somos lobo e cão.
Boa leitura!
02 terça-feira mar 2021
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inLi outro dia que o século XX terminou com a eclosão da pandemia que hoje nos afeta, assim como o século XIX teria terminado com o início da primeira guerra mundial, a “guerra de todas as guerras”, como era chamada. A verdade é que os séculos passam e o ser humano, bem, esse muda muito pouco e aprende menos ainda. A poesia, como sempre, relata essa imobilidade e até o andar para trás do humano, com a propriedade que nenhum livro de história é capaz de alcançar. Não qualquer poesia, contudo, por isso trago Wislawa Szymborska, uma poeta de todos os tempos:
Ocaso do século
Era para ter sido melhor que os outros o nosso século XX.
Agora já não tem mais jeito,
os anos estão contados,
os passos vacilantes,
a respiração curta.
Coisas demais aconteceram,
que não eram para acontecer,
e o que era para ter sido
não foi.
Era para se chegar à primavera
e à felicidade, entre outras coisas.
Era para o medo deixar os vales e as montanhas.
Era para verdade atingir o objetivo
mais depressa que a mentira.
Era para já não mais ocorrerem
algumas desgraças:
a guerra por exemplo,
e a fome e assim por diante.
Era para ter sido levada a sério
A fraqueza dos indefesos,
a confiança e similares.
Quem quis se alegrar com o mundo
depara com uma tarefa
de execução impossível.
A burrice não é cômica.
A sabedoria não é alegre.
A esperança
já não é aquela bela jovem
et cetera, infelizmente.
Era para Deus finalmente crer no homem
bom e forte
mas bom e forte
são ainda duas pessoas.
Como viver – me perguntou alguém numa carta,
a quem eu pretendia fazer
a mesma pergunta.
De novo e como sempre,
como se vê acima,
não há perguntas mais urgentes
do que as perguntas ingênuas.
Wislawa Szymborska, in poemas, Cia das Letras.