Ando numa fase de desânimo, confesso. Com o Brasil, o mundo, o ser humano, que parece que nunca vai dar certo. Mas a literatura salva, inclusive quando se espelha na realidade. Digo isso por conta de um livro que já li e outros dois que estou lendo. Livros incríveis, onde a história nos mostra que, ao fim e ao cabo, monstros é o que somos. Nossa indignação é efêmera e seletiva, justa na maior parte das vezes, pois quem em seu juízo perfeito acreditaria ser normal 33 pessoas violentarem sexualmente uma jovem? Ninguém, por óbvio, mas nossa monstruosidade nos faz trancar no porão da mente, bem trancado e amordaçado, todo o nosso repertório de piadas sexistas e preconceitos de gênero; nos obriga a sufocar e vendar nosso passado histórico de diversidade étnica alimentada por séculos de abusos sexuais de senhores de escravos, coronéis, exploradores, pais de família e trabalhadores, a evolução mais recente dessa espécie tão complexa e monstruosa chamada homo sapiens.
Mas vamos aos livros? De maneiras diferentes, sob pontos de vista diversos, cada uma dessas obras muito dizem sobre a nossa monstruosidade, de como ela é banal e onipresente.
A primeira indicação eu já li mas sempre volto para consultar, quando necessário, pois considero que os livros da psicanalista e historiadora Elisabeth Roudinesco imprescindíveis para quem quer compreender um pouco melhor quem, de fato, somos, as raízes do nossos comportamentos atuais. “A parte obscura de nós mesmos – uma história dos perversos” (Tradução de André Telles, Zahar) é um relato didático e assustador da perversidade humana e de como ela se desenvolveu dentro de cada sociedade. Roudinesco parte do Marquês de Sade mas não se limita a este autor: o livro é uma dissecação a frio de nossos cantos mais escuros, os mais perversos em um mundo de perversos. Não é uma leitura exatamente agradável, mas a autora torna tudo mais fácil, como somente os grandes podem fazer.
Os outros dois estou lendo, ainda não terminei, mas não consigo desgrudar deles, com suas monstruosidades tão peculiares. Começo por “A festa do bode” (Tradução de Paulina Watch e Ari Roitman, Alfaguara) em que Mário Vargas Llosa traça uma rede de narrativas e expõe as vísceras do monstruoso Trujillo, o Generalíssimo, o Benfeitor, em todas as suas contradições, mostrando que monstros também são capazes de construir algo, ainda que à custa de muito sangue inocente e sofrimento. O outro trata de algo mais atual e, ainda assim, não menos monstruoso e inquietante: em ” Vozes de Tchernobil ” (Tradução de Sonia Branco, Companhia das letras) a bielorrussa Svetlana Aleksiévitch colhe depoimentos, testemunhos e promove o encontro chocante, belo e triste entre realidade, história e literatura ao retratar uma das maiores monstruosidades dessa nossa triste caminhada: a explosão do reator central de Tchernobil colocou à nu a monstruosidade mais infame, aquela resultante do abandono e do medo, da incompetência e do velho e bom senso de autopreservação inerente a todo politico. A monstruosidade estatal, reduzindo seres humanos a pedaços de carne, a números, a estatísticas, a nada. Para que o Estado e sua monstruosidade sigam vivos.
São meras sugestões, queridos leitores, mas acredito que esses três livros tracem uma trajetória interessante dessa monstruosidade nossa de cada dia, em que o estupro coletivo triste e inconcebível é apenas a face visível de uma sociedade profundamente doente e da qual, conscientes ou não, em maior, menor ou minima parte, todos colaboramos um pouco para construir. Ler e refletir, ainda é o que de melhor podemos fazer, pelo menos acredito nisso.
Boa leitura!