Confesso que amo museus. Mas também confesso que minha experiência, pelos vários museus que visitei, resume-se à apreciação estética, à experiência de ver e simplesmente admirar a beleza, o talento, ou a importância histórica de cada obra. Assim foi quando fui ao MASP pela primeira vez e vi uma pintura de meu ídolo Monet: ver e ter a noção de que muito tempo atrás um gênio planejou e executou com pinceladas únicas aquela obra-prima me emocionou e me encheu de prazer. Era a beleza do momento mas também era a noção vaga e inexprimível de que eu olhava para dentro de mim e sentia toda a energia do maravilhoso trabalho humano.
Assim foi, nos anos que se seguiram, com vários outros museus que tive a felicidade de visitar pelo mundo: Paris, Londres, Barcelona, D’Orsay, Louvre, National Gallery, Gaudí; em cidades que, por si, considero como museus vivos e fascinantes, algo mais fácil de visualizar e sentir quando não somos parte da cidade. E se há o amor pelo engenho e arte humanos, como seria um museu dedicado exclusivamente ao amor? E ao amor por uma pessoa, um amor exagerado, obsessivo, assustadoramente belo e ao mesmo tempo estranho quando chegamos mais de perto?
É disso que trata o nobel de literatura Orham Pamuk no livro que recomendo nesse post. Em O museu da inocência o autor turco ainda não abandona de todo o pano de fundo político de sua amada Turquia mas desta a riquíssima narrativa em primeira pessoa traz o ponto de vista de Kemal e seu incrível amor por sua bela prima, Fusun. É um amor feito de memórias, de dor, sofrimento e renúncia, e tudo isso é exagerado, por vezes parece ao leitor mais frívolo (como eu) um pouco ridículo, mas posso garantir que não há como permanecer imune à força de um amor como esse por muito tempo.
Embora a amada Instambul de Pamuk e as transformações pelas quais as Turquia passou ainda apareçam como pano de fundo, desta vez o Nobel turco detêm-se em uma historia de amor, de início tão banal como qualquer outra historia de amor, com Kemal assumindo a narrativa e o controle da memória para confessar os dias de glória, delírio e e depois o mergulho no abismo da tristeza da separação, as descobertas do sexo sem limite e depois a dolorosa e longa espera pela vitória efêmera do amor. Ao final, Fusun é apenas a melhor e mais intensa lembrança, ponto de partida para a construção de um museu em homenagem à amada, mas também ao amor e às coisas que se enchem de significação quando tocadas pelas sensações que somente a lembrança de um grande amor desperta.
Para Kemal (e para Pamuk, que se entrelaça à narrativa como personagem e depois como narrador, de forma extremamente engenhosa), as lembranças são parte das coisas e as tornam vivas e isto confere alma ao museu da inocência:
Era o momento mais feliz da minha vida, mas eu não sabia. Se soubesse, se tivesse dado o devido valor a essa dádiva, tudo teria acontecido de outra maneira? Sim, se eu tivesse reconhecido aquele momento de felicidade perfeita, teria agarrado com força e nunca deixaria que me escapasse.
A experiência da memória que reside no beijo, um museu de lembranças:
Não eram apenas nossas bocas molhadas e nossas línguas que se entrelaçavam, mas nossas respectivas memórias. Assim, toda vez que nos beijávamos, primeiro eu a beijava da maneira como se encontrava à minha frente, e depois da maneira como existia na minha memória.
No período doloroso da separação e da espera, Kemal nos dá a maior prova de um amor devastador: é nessa época que o museu em amor a Fusun começa a tomar forma através do amor que reside em cada objeto, evocando lembranças através do toque, do cheiro, do sabor e de como Kemal sente-se vivo em razão do amor a cada objeto primeiro trazido para o apartamento onde os amantes se descobriram pela primeira vez, depois para a casa da amada, transformada posteriormente em museu. Uma homenagem ao amor que nunca morre.
No final, Kemal fascina o leitor com suas observações sobre inúmeros museus do mundo e suas peregrinações aos maiores e aos menores e mais significativos e a surpresa final, quando o autor, finalmente, assume o controle da narrativa e fecha o círculo das lembranças.
Repleto de trechos belos e descrições magníficas do amor e do sexo apaixonado, é um livro feito de lembranças e do amor exagerado, por vezes estranho mas sempre incrível, o amor que reside nas coisas e que preserva a memória do maior dos sentimentos. Tive vontade de transcrever várias outras passagens lindas desse livro, mas melhor é convidar você, leitor, a caminhar com Kemal e Pamuk pelas páginas dessa linda e comovente história de amor. Boa leitura!