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Na minha adolescência e juventude, nos idos dos anos 80 do século passado, ainda morando em São Paulo, eu ostentava um tripé de paixões que formaram, para o bem ou para o mal, o que sou hoje: minhas paixões pela literatura, pelo cinema e pelos quadrinhos.

E tinha meus ídolos, é claro. Na literatura autores como J.D. Salinger e sua revolta no campo de centeio, Kurt Vonnegut, os romances de mistério de Agatha Christie que eu lia de um fôlego só, um misto de rebeldia com a busca do racional. Érico Veríssimo com Olhai os lírios do campo e seu romantismo meloso como dos melodramas de Otto Preminger, de Mário de Andrade e Amar, verbo intransitivo, para mim sempre o melhor do criador de Macunaíma.

No cinema aquele garoto que comprava revistas Set aos montes e colava os cartazes no quarto tinha fascinação por uma nova era de filmes estranhos e fascinantes ao mesmo tempo, desde Uma noite alucinante de Sam Raimi e seu terrir insano e gosmento, passando por um de meus ídolos, o canandense David Cronemberg e seus filmes surreais, assisti A mosca duas vezes, só no cinema, me encolhendo na cadeira ao final da sessão para ficar para a próxima (sim, nessa época ainda dava pra fazer isso) e o magnífico Gêmeos: mórbida semelhança devo ter visto uma infinidade de vezes. Depois vieram Blade runner, E.T. que me fascinou quando eu ainda era criança, Indiana Jones e tantos outros. E também os filmes de ação com heróis falíveis, que faziam bobagem e se machucavam, mas ainda tinham forças pra fazer o que achavam certo. Dentre estes sempre me fascinou John MacClane, encarnado por Bruce Willis na série de filmes da franquia Duro de matar. Aquele cara que eu via antes na TV numa série de detetives cômica de repente tinha virado um astro de ação. Atores como Willis e Mel Gibson da série Máquina mortífera também eram meus herois.

E nos quadrinhos que eu amava e colecionava a ponto de ter caixas de revistas guardadas (que depois vendi a preço de banana por não ter onde colocar quando me mudei para o interior e, também, por medo das traças), entre HQs de X-Men, Vingadores, Batman e Liga da Justiça, eu cultivava uma grande paixão, daquelas à primeira vista: a revista Circo. Capitaneada pelos maiores gênios do quadrinho brasileiro (Laerte, Luis Gê, Glauco e Angeli), essa revista durou apenas oito edições extraordinárias que eu comprava e levava na mochila para ler nos intervalos das aulas em meu colégio em Osasco (eu morava em São Paulo mas coladinho na fronteira com Osasco, de onde posso afirmar que sempre transitei, por assim dizer, entre dois mundos, todos os dias).

Capa da Circo, revista que revolucionou a HQ brazuca

E não foi só pois a Circo gerou lindos filhotes como Os piratas do Tietê da Laerte, o Geraldão do Glauco e, principalmente, a irreverente Chiclete com banana de Angeli e seus inesquecíveis personagens como os Skrotinhos, Meia-oito, Bob Cuspe e a melhor de todos, Rê Bordosa, aquela que teve até uma morte muito doida apresentada aos leitores. Essa era a melhor literatura de São Paulo. Não haveria TV Pirata sem esses gênios, Glauco foi roteirista daquele que ainda é o melhor e mais inteligente programa de humor já produzido por aqui, nosso SNL, nosso Seinfeld.

Na Chiclete com banana Angeli já previa que a vaca estava indo para o brejo

E eu, que queria ser punk como Bob Cuspe, fui comunista de fachada como Meia-oito, mas sempre bem-educado pela minha mãe acredito ter experimentado poucos momentos Skrotinhos na minha vida e não cheguei nem perto de drogas como o Doy Jorge do Glauco ou das bebedeiras homéricas de Rê Bordosa, acabei mesmo me tornando rato de biblioteca e faculdade e depois funcionário público e blogueiro amador. Mas as marcas que estes maravilhosos quadrinhos me deixaram ainda estão aqui, comigo.

Envelhecer, porém, não é fácil. Pois é amadurecer, algo que considero supervalorizado. Pois tudo isso implica em descobrir, dia após dia, que nossos heróis não são eternos, que as obras até ficam mas que eles adoecem, morrem ou se retiram para a coxia, resolvem sair do palco e, nessa hora, olhamos em volta e nos damos conta de como esse teatro é grande e fica vazio sem eles.

Escrevo esse texto motivado pela notícia de hoje na Folha de que Angeli vai se aposentar, forçadamente, por conta do diagnóstico de afasia, uma condição neurológica que implica na perda da capacidade de se expressar, lembrar e, até mesmo, falar. Dias atrás foi Bruce Willis. Imagino esses dois ídolos meus, durões cada qual à sua maneira, mergulhando lentamente na escuridão do esquecimento, da arte, da obra de cada um, da família, da vida. Fica parecendo uma morte em vida pra mim. E me deixa triste pois nossos heróis, esses homens falíveis que, como eu, fizeram besteiras na vida mas venceram no final e viveram para contar, esses homens que tanto me deram quando garoto, um de meus muitos pais na arte e na vida, que eles vão me esquecer, vão esquecer a todos.

Parafraseando o que já disse antes, não sei quando, do mesmo modo que se Machado de Assis tivesse escrito em inglês ele seria maior que Henry James, se Angeli tivesse nascido na gringa seu nome seria mais conhecido do que o de Robert Crumb, que também era gênio e foi ídolo do brasileiro. Mas tudo isso é conjectura, conversa fiada e acredito que Angeli teria me olhado torto com esse comentário, aquele olhar parecido com Bruce Willis, de cara durão mas sensível, amigável mas irônico.

Angeli, meu ídolo, boa aposentadoria, mestre, se cuide e melhoras. Se você esquecer de mim, saiba que não tem importância, eu não esqueço dos meus heróis.