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Conforme vão passando os dias, não sei se vocês sentem o mesmo, mas um sentido de urgência vai tomando conta de cada ato de nossas vidas. Vivemos em um mundo em que tudo deve ser feito ontem, em que vemos cada grão de areia cair pelo vão da ampulheta e parece que essa imagem nos hipnotiza e nos impede de fazer tudo o que pretendemos ou que planejamos fazer.
Mas tudo isso é ilusão, pois estamos, de fato, com medo de que os grãos de areia parem de cair e que não vejamos mais nada. Para quem gosta de filmes, séries, quase não percebemos que os Netflix da vida adotaram o que nós, leitores (pelo menos eu, no caso) já fazemos há muito tempo: lemos um, dois, três livros ao mesmo tempo, marcamos a pagina e continuamos depois. E também vemos séries, filmes, documentários, marcamos a página e continuamos depois. Ou não.
Às vezes acho que estou lendo muitos livros ao mesmo tempo, que não vou dar conta de tudo, que estou vendo muitas séries, que isso me dispersa e que deveria ter mais foco. Mas tive foco a vida toda, na graduação, na pós, mestrado e doutorado, sempre planejando, anotando, lutando para manter a concentração em um mundo que cada vez mais te convida a ficar desconcentrado. E depois que tudo terminou ainda tem o trabalho onde o tempo todo a vida pede para você se concentrar.
Eu, então, resolvi que não tenho mais a obrigação do foco, ao menos nas minhas leituras e em outras atividades. Leio enquanto tiver interesse, se eu chegar ao fim do livro é porque realmente ele valeu a pena. Se não, pelo menos para mim, não tenho que chegar ao final da estrada. Estudar literatura exige disciplina, apreciar a literatura pelo que ela simplesmente é exige apenas apego, empatia.
A urgência, ao fim e ao cabo, não existe, apenas a criamos para justificar o que sabemos que não conseguiremos fazer a tempo. Vamos relaxar e ler, então, até o fim ou até quando a jornada nos convidar e nós aceitarmos o convite.
E vamos ler, assistir, ouvir, viver, enquanto der vontade.
Voltamos à nossa programação normal no próximo post, temos muita literatura pra comentar. Um verso de Annita Costa Malufe para terminar, do lindo livro Um caderno para coisas práticas:
ela vem todos os dias aqui
vejo-a percorrendo os quartos
ou às vezes simplesmente
ouço ou noto nos olhos do meu
gato uma presença estranha
as orelhas em pé o focinho
farejando algo no ar
sombra ou insetos voadores