Terminei de ler essa semana o volume de correspondência incompleta de Ana Cristina Cesar. Livros com coletâneas de cartas de autores famosos são muito comuns talvez como, e essa é uma teoria minha, pelo voyeurismo inerente aos curiosos humanos, aquele prazer de olhar pelo buraco da fechadura e saber o que se passa no íntimo de alguém que admiramos ou mesmo amamos pelo que produziu, no caso aqui na literatura.
A edição em e-book que possuo, caprichada, possui dois áudios com uma aula de Ana e uma entrevista. A aula é de 1983, ano em que uma de nossas maiores poetas tiraria a própria vida e encerraria uma trajetória errática mas bela. Essa erraticidade foi o que mais me marcou na leitura das cartas de Ana C. O formato de diário, confissão íntima, relato pessoal, esse formato seria amplamente utilizado em sua produção poética, como em cenas de abril e luvas de pelica, até mesmo em a seus pés e sua poesia concisa, em alguns momentos telegráfica, mas de caráter (verdadeira ou falsamente) intimista.
No caso de Ana Cristina Cesar, impossível não notar: vida e literatura estão o tempo todo abraçados. Ela fala de problemas muito reais, muito dos quais com que me identifico, o estudar em terras estrangeiras, a fascinação e ao mesmo tempo a solidão o medo, o conflito entre ir embora e retornar a uma realidade que nao é a desejada. Os conflitos ideológicos, a rejeição a rótulos, tudo isto me tocou porque vivi e ainda vivo sob tais conflitos. Ela também fala sobre os aborrecimentos burocráticos, as relações e os amores que se sucedem e os intervalos de saudade e, conforme vai chegando ao fim desse volume, percebe-se que o relato pessoal se torna cada vez mais literatura, cada vez mais poesia.
Enquanto escrevo ouço a voz cariocamente arrastada de Ana dizendo que a intimidade não é comunicável através da literatura. No caso da construção poética o diário é fingido mas no caso da correspondência o relato pessoal parece tomar o primeiro plano mas a literatura nunca deixa a cena pois Ana Cristina Cesar era literária até quando se esforçava para ser pessoal. Vida e literatura, quando são a mesma coisa, formam um mundo rico, sombrio e colorido ao mesmo tempo, uma fechadura através da qual nosso olhar hesita, refletindo diante do incômodo se vale a pena continuar.
Você, leitor, leia a correspondência, leia a poesia de Ana e decida se vale a pena entrar pela toca do coelho.