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20 poemas para o seu walkman, Ana Martins Marques, literatura, mapas, Marília Garcia, mundo, O livro das semelhanças, poesia
É complicado ficar confessando coisas que entregam a idade mas também é inevitável, portanto vamos lá: sou do tempo em que tínhamos que desenhar mapas, colorir, deixar bonitinho, impecável. E era algo que eu simplemente detestava, pois minha habilidade de desenho e, principalmente, pintura, sempre foram vergonhosamente limitadas. Desenhar e pintar o Brasil e suas regiões: nível de angústia dor de estômago. Desenhar e pintar um continente: nível de angústia dor de estômago mais vertigem e revolta contra a professora e a escola. Desenhar e pintar o mapa-mundi: nível de angústia dor de estômago, vertigem, revolta contra o mundo e maldição sobre o momento em que cheguei a esse planeta. A mera visão do papel vegetal semitransparente que colocávamos sobre o mapa para imitar o desenho perfeito do atlas já me causava o impulso de sair correndo pela praia em revolta, como em Os incompreendidos de Truffaut, com a diferença de que eu morava e estudava em São Paulo ou Osasco e não tinha praia ou pelo menos teria que correr uns 150 quilômetros para encontrar uma e, então, eu me resignava e garatujava o bendito mapa.
Mapas, desenhar, pintar, atlas, são palavras hoje totalmente desconhecidas das últimas gerações que nasceram já ganhando seu pontinho no google mapas. Eu poderia dizer que naquela época é que era bom e tals mas estaria mentindo, desenhar e pintar mapas era um martírio e totalmente inútil, como decorar os afluentes da margem direita do Rio Amazonas, por exemplo. Usar mapas, contudo, aqueles já prontos que a gente via na parede da escola, ou consultava no atlas ou mesmo o famoso globo (que eu enchi a paciência da minha mãe até ganhar um) tinham o seu charme: olhar atentamente, correr o dedo sobre países até encontrar aquele lugar, aquela cidade, aquele rio, olha então é aqui que fulano mora, que cicrano se mudou, então foi aqui que beltrano morreu…
Esse prazer da pesquisa e da descoberta, o exercício da paciência e o prazer de encontrar o que estava procurando, isso sim faz bastante falta nos dias de hoje, olhar o mapa mas também apreciar a jornada pois hoje basta teclar rapidamente, alguns cliques et voilà, eis o lugar que você estava procurando, vou te mostrar o melhor caminho, olha pega essa rua que você evita o trânsito. Mas se a vida é a arte do encontro apesar de tanto desencontro nessa vida porque a pressa de chegar se podemos encontrar o mais no caminho?
Toda essa digressão matutina e geoespacial foi motivada pela leitura de O livro das semelhanças da poeta mineira Ana Martins Marques, certamente o melhor livro de poesia que comprei nos últimos anos. Normalmente leio livros de poesia em qualquer ordem, abro uma página, escolho, leio, penso, leio de novo, fecho e assim sucessivamente. Já com esse livro foi diferente, li na sequência, uma poesia depois da outra, uma melhor que a outra. É um livro que simplesmente não dá para largar, uma poética que injeta lirismo no prosaico, a vida, simples, fica muito mais bela quando Ana aciona seu tear lírico.
Daria para falar de várias coisas mas aí o post ficaria longo demais então me concentro na paixão de Ana por mapas. O livro é dividido em quatro partes, como capítulos e um deles se chama Cartografias. O ramo da ciência que gira em torno de mapas vira a arte do encontro na poesia de Ana Martins Marques. Como nascemos na mesma época acredito que ela também tinha que desenhar mapas mas desconfio que ela caprichava bem mais do que eu.
Há o mapa que aproxima como em
Você faz questão/de dobrar o mapa/de modo que nossas cidades/distantes uma da outra/exatos 1720km/fizessem subitamente/fronteira
Ou o mapa para o encontro e a solução para o desejo
você assinala no mapa/o lugar prometido do encontro/ para o qual no dia seguinte me dirijo/com apenas café preto o bilhete só de ida do metrô/a pressa feroz do desejo deixando no entanto esquecido sobre a mesa o/mapa que me levaria/onde?
Ou, afinal, a impossibilidade do encontro e fatalidade do desencontro
combinamos por fim de nos encontrar/na esquina das nossas ruas/que não se cruzam
Logo, há mapas que são encontro, há os que são desencontro, há becos sem saída nos mapas e Ana Martins Marques joga esse jogo de forma magistral, num dos mais belos livros de poesia que li nos últimos anos.
Mas sempre entendi, também, que mapas saturam a realidade dentro de nós, um mundo tão vasto, sem rima nem solução, tantos lugares (viajar, perder países, como consta num livro de Villa-Mattas) que mesmo o mapa pode ser demais para quem não está simplesmente em busca de um lugar para chegar pela rota mais rápida e confortável.
É o que vejo e sinto, também, quando leio a poesia da carioca Marília Garcia em 20 poemas para o seu walkman, com seus poemas que evocam ruas e latitudes, como um mapa que leva ao desconhecido e ao desencanto, como andar pelas ruas de Paris e se perder, uma flânerie sem propósito e que, nos tempos de hoje em que tudo deve ter um propósito, pode soar desesperador.
A geografia urbana de Paris, em forma de caracol com seus arrondissements, quartiers e suas ruas e vielas labirínticas nas quais a ordem parece emergir do caos, tudo isso encontra seu point d’arrive em le pays n’est pas la carte:
pensa bem mas/se tivesse as ruas quadradas/teria ido a outro café, teria dito tudo de/outro modo e visto de/cima a cidade em vez de se/perder toda vez na saída do metrô. não é desagradável estar aqui, é apenas demasiado real, diz com os cílios erguidos/procurando um mapa
procurar um mapa quando a realidade parece demais, um rumo quando a vida não oferece nenhum, um mapa que nos guie, ainda que não saibamos exatamente para onde vamos. Mapas já foram cartas, hoje são telas, mas a poesia ainda pode nos guiar ou nos amparar diante da realidade, como na poética dessas suas escritoras incríveis e seus livros imperdíveis.
Procurem os livros, abram, corram os dedos pelas páginas e leiam como os cegos, buscando uma saída para o beco em que nos encontramos, lembrando também de Manuel Bandeira.
Já que não mais se desenham nem pintam mapas, aproveitem e tracem seu próprio caminho, com a poesia por companhia pois, dizem, o que importa é a jornada.
Boas leituras!