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Albert Camus, Camus, literatura, O Estrangeiro, poesia, romance
E vamos começar a temporada 2018 deste modesto espaço para falar (muito, espero) e pensar (nem tanto) sobre literatura.
E começo escrevendo sobre um clássico, um livro que encarei ainda no ano passado e que já há bastante tempo queria escrever sobre. Mas o que ainda é possível escrever sobre Albert Camus e O estrangeiro?
Vou falar, pois, sobre minhas impressões e do motivo de considerar essa pequena narrativa um clássico absoluto, um dos monumentos da literatura do século XX. Chamo de clássico o texto capaz de sempre oferecer algo novo a quem lê, não importando quantas vezes você o leia. Aqui me aproximo da ideia de Italo Calvino em Por que ler os clássicos, texto obrigatório no curso de letras e com o qual não há como não concordar. Mas devemos considerar, também, que ler um clássico é perceber o diálogo perene da obra com o momento que vivemos. Essa é uma questão mais temporal mas, ainda assim, relevante.
Em tempos de xenofobia rediviva apenas o título do livro remete a esses dias sombrios que parecem voltar com cada vez maior e incômoda evidência. Mas acompanhar a trajetória de Meursault e sua indiferença ao mundo e ao ser humano é constatar a nossa própria indiferença ao sofrimento alheio, nossa incapacidade de empatia e, mais que tudo isso, nossa capacidade de saltar do nada à explosão destruidora, mesmo que sem um motivo aparente.
No prefácio da edição que li, O estrangeiro é chamado de tragédia solar. Essa expressão, precisa mas incompleta, lembrou a mim de outro clássico, só que do cinema: O sol por testemunha de René Clement, com Alain Delon (não gosto da versão chata com Matt Damon), baseado em outro livro arrebatador, O talentoso Ripley de Patricia Highsmith, mostrando outro personagem tão indiferente ao sofrimento alheio quanto Meursault, o escroque Tom Ripley. Em ambos, o momento decisivo, a explosão de violência se dá à luz do dia. Com Ripley, contudo, a impulsividade homicida é logo controlada e ele assume o comando da narrativa. Com Meursault, a explosão de violência é o único momento em que ele se encontra verdadeiramente no comando dos fatos. Até então e posteriormente ao assassinato, Meursault acompanha o desenrolar dos fatos com uma desconcertante indiferença, ainda que seja o centro da narrativa. Perceberam quantas vezes usei o termo narrativa para me referir à vida de cada personagem, aos fatos e ações que delimitaram e conduziram ao desfecho? Obviamente proposital: quantas vezes em nossas vidas nos encontramos no comando da nossa narrativa e quantas vezes, como Meursault, acompanhamos o que acontece conosco como se fôssemos meros expectadores? E quando finalmente resolvemos agir somos capazes de fazer tudo certo, na hora certa ou, por medo e desorientação, destruímos tudo dando cinco tiros quando um seria suficiente?
Essa questão, aliás, foi a que mais me marcou e ainda me atormenta em relação a O estrangeiro: por que cinco tiros? Por que a explosão de violência tão desmedida? Minha teoria é de que, através dos séculos, o medo guia a humanidade. E que essa mesma humanidade, ao se deparar com o que julga lhe ameaçar e que desconhece, age com desmedida ferocidade e não se contenta em derrotar o objeto de seu medo, tem que destrui-lo, destroça-lo, privar o alvo de qualquer resquício de humanidade.
É o que Meursault faz, mas ele não está sozinho. Os refugiados que muitos querem ver desaparecer neste vasto mundo sem rima como solução; que desapareçam nas águas geladas do Mediterrâneo ou nos acampamentos que são os novos campos de concentração; estamos junto a Mersault no medo do outro, no make America great again, na escolha de alvos aleatórios e, muitas vezes, imaginários, para desviar a atenção de nossos insolúveis problemas; estamos junto ao aplaudir ou silenciar diante daqueles que exploram o medo para justificar a violência, daqueles que propõem metralhar comunidades, daqueles que aplaudem tais propostas com um sorriso fascista e higienista; estamos juntos a Meursault no momento em que fechamos o vidro do carro para o pedinte no sinal mas somos capazes de deixar o carro para agredir quem nem conhecemos por causa de uma fechada no trânsito.
Camus não explica a explosão de violência de Meursault e este ponto que divide a narrativa em duas permanece um mistério. Certo é que, ao menos para mim, nos poucos momentos em que o personagem principal desse livro obrigatório se aproximou da humanidade, ele o fez através explosão de violência nascida do medo e da rejeição a esta mesma humanidade.
O estrangeiro, portanto, é uma obra incômoda não pelo tamanho mas pela capacidade de incomodar e mostrar que, como Meursault, ainda somos e, infelizmente, ainda seremos de uma maneira geral indiferentes ao sofrimento alheio, guiados pelo medo e reagindo com violência extremada à diferença. Ler Camus é constatar, acima de qualquer coisa, nossa falência moral.
Leia também e tire suas próprias conclusões. Até a próxima!