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Carolina Maria de Jesus, Djaimilia Pereira de Almeida, Favela, literatura, livros, Quarto de despejo, refugiados
Em meio a tanto trabalho e poucas certezas, ao que parece a peste que nos assolou no último ano e meio começa a perder força, felizmente com a vacinação avançando. Essa peste que está nos deixando todos sabem qual é, pois há outras que ainda nos tiram os dias e quanto a estas só nos resta agir direito da próxima vez, escorraçando a canalha que nos governa em definitivo. Mas isso vai ter que esperar. Hoje amanheci pensando em quartos de despejo. São pequenos, normalmente inabitáveis, cheios de quinquilharias, lixo, restos. E, ainda assim, neles pessoas insistem em viver, ou melhor, sobreviver.
E quartos de despejo os temos em todos os lugares, com vários nomes: guetos, campos de concentração, campos de refugiados, conjuntos habitacionais de periferia, as cohabs como costumam chamar. Estão em todos os lugares, todos os continentes, desde o Harlem de Nova Iorque até as banleieues de Paris, dos subúrbios de Atenas e Miami, do Haiti que é um enorme quarto de despejo da miséria humana até, voltando a nós, as favelas, essa criação tão nossa. E nesse ponto penso em uma arquitetura da miséria, em como cidades crescem e se desenvolvem em torno da ideia de dependência e segregação. Pobres e miseráveis não são desejados por quem não é (não apenas ricos mas, principalmente, o que chamamos de classe média, essa estranha gente que nos jogou no atoleiro do qual não saímos nos últimos anos) e, também, necessários, pois alguém precisa fazer o serviço braçal. A solução, então, é criar quartos de despejo, pequenos bolsões nos quais o lixo da sociedade é colocado à disposição para o caso de necessidade; para os políticos em época de eleição; para os demais que não moram no quarto de despejo em caso de mão de obra pouco qualificada que aceite trabalhar até a exaustão ganhando um salário miserável.
Toda essa, digamos, dinâmica social perversa e que perpetua a desigualdade e a exclusão me vêm à mente nos últimos tempos. Primeiro, porque depois de anos retirando pessoas do quarto de despejo, nos últimos tempos um monte de gente voltou a se apertar nesse cantinho de miséria, a viver de restos; segundo, pois todas essas questões não vêm de hoje e tomam um caráter perene e muito incômodo, sensação que tive, dentre tantas outras, ao ler o livro indicado por este blog, o pungente Quarto de despejo, com o subtítulo Diário de uma favelada, relato em tempo e vida real da catadora de lixo (dizem recicláveis hoje em dia, nessa onda de higienização de ofício) Carolina Maria de Jesus, um livro que me comoveu até o tutano dos ossos e que mostrou que o quarto de despejo onde os trastes que a sociedade quer esconder ou dos quais quer se desfazer apenas aumentou de tamanho e mudou de lugar.
E, em meio ao quotidiano de uma favela e da descrição de tantos tipos que parecem saídos direto das páginas dos livros para a vida real (lembrei de O cortiço ao ler esse livro e fiquei espantado com a precisão de Aloisio Azevedo, noves fora os excessos romanescos, claro), Carolina relata com absoluta clareza e uma escrita fluida problemas que até hoje conhecemos: a luta diária para conseguir o necessário à sobrevivência, a luta para criar os filhos com quase nada, o desprezo do serviço público no tratamento aos muito pobres, que transitam de uma repartição a outra em busca de socorro e que, quando reclamam, são presos; a fome sempre sentada junto ao favelado, os políticos que só se lembram da existência dessa gente em época de campanha eleitoral para depois desaparecerem, as igrejas que aparecem com ajuda em troca da alma de cada favelado, as brigas, mortes, assassinatos, a polícia que chega com a habitual truculência. Em meio a tanta miséria, dor, violência e sofrimento, Carolina ainda descreve as noites belas quando o frio e a chuva não atrapalham, as danças, a música, os amores, a vontade de viver em um mundo melhor, em sair do quarto de despejo. O favelado não é um objeto, não é depósito de bala perdida, ele pode perder a vida mas, como Carolina mostra, enquanto não perder a esperança e a dignidade, ele ainda está vivo. E nós, que moramos fora do quarto de despejo precisamos parar de virar o rosto quanto passamos em frente a este cantinho de quem não tem mais nada a perder.
Carolina escreveu esses diários entre 1955 e 1959, quando morava numa favela às margens do Tietê, onde hoje ficam a região do estádio do Canindé, reduto de imigrantes portugueses que interagiam com os favelados, numa relação de exploração tanto econômica quanto sexual, como descrito pela autora de maneira crua em seu livro. A favela mudou de lugar, os favelados daquela época foram enxotados para que o estado impusesse sua lógica de urbanização excludente, muitos foram para debaixo de pontes, outros abriram novas favelas, cada vez mais longe dos centros. Formaram as periferias, onde pobres ficam bem distantes de tudo e longe da vista que incomoda quem passa nos grandes centros. Os problemas de Carolina, contudo, seguem atuais e, ao que parece, o quarto de despejo já não comporta mais tanta gente: basta sair às ruas das grandes cidades para ver que nunca tantas pessoas foram vistas dormindo pelas calçadas dos grandes centros como agora. Viraram parte da paisagem urbana e passamos propositalmente distraídos e fingindo que os despejados não existem ou são como os postes e as árvores dos parques. O quarto de despejo está cada vez mais perto de nós e só não vê quem não quer. Leiam o livro de Carolina para saberem que essa dinâmica não vem de hoje mas que ainda pode durar muito mais.
E, para finalizar, dá para indicar outro livro que trata de favelas e de exclusão, sob uma perspectiva mais poética, abrangente e nem por isso menos importante. Falo do belíssimo Luanda, Lisboa, Paraíso, de Djaimilia Pereira de Almeida, que narra numa prosa cheia de poesia mas também de melancolia a saga de Cartola na luta para tratar seu filho Aquiles, ao deixar para trás a mulher e uma das filhas em sua amada Luanda, chegando a Lisboa atrás da cura e só encontrando mais miséria mas também a amizade os laços que a pobreza criam entre os deserdados na favela de Paraíso. É um relato estupendo sobre estar em um lugar e a ele não pertencer, sobre os desterrados, entre aqueles que transitam de uma pátria a outra sem se identificar com nenhuma. Sobre acreditar mais em si e nas pessoas que se unem pela miséria do que naqueles que não compreendem como é viver em um quarto de despejo que no caso de desterrados e refugiados, carregamos nas costas, como caramujos. Poeticamente, Djaimilia narra como Aquiles precisa tratar o calcanhar, numa clara referência às obras que fundaram a narrativa ocidental e às quais devemos tanto. Luanda, Lisboa, Paraíso é, antes de tudo, a viagem de Aquiles que não mais guerreia, Cartola pode ser visto como um Ulisses às avessas, saindo de casa e de tudo se afastando para se encontrar em meio a essa arte dos desencontros que é a vida.
Dois belos livros que, cada qual a sua maneira, muito dizem sobre os deserdados da Terra, aqueles que vivem em quartos de despejo esperando, ainda, que um raio de sol, solitário e purificador, afinal, venha a trazer luz e calor a tantas trevas. Essas pessoas esperam e ainda tem dignidade. Ainda estão vivas.
Vamos ler, leitura é vida. Até a próxima.