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Fico sabendo que Lygia Fagundes Telles nos deixou, ao menos fisicamente, pois suas obras marvilhosas sempre estarão conosco. Frase pronta, bem sei, e acredito que a própria Lygia torceria o nariz para um início de texto assim, me fulminando com aquele olhar felino e me dizendo silenciosamente que eu poderia ter começado melhor.

Peço desculpas pois não sou Lygia, como não sou Clarice, minhas referências maiores nesse universo de nossa literatura, as melhores mulheres e, portanto, melhores seres pensantes e escritoras. Quase um século de uma vida intensa e transbordante, poucos podem dizer o mesmo próximo do fim de uma jornada.

Das minhas leituras de Lygia, para além dos romances como As meninas ou Selva de Pedra, ficam em minha memória os contos, mostrando um domínio da narrativa curta poucas vezes visto em nossa literatura, deste país ou de outros, comparável somente a Clarice Lispector, Katherine Mansfield ou Alice Munro, dentre outras. Mas Clarice, como já comentei tantas vezes aqui, preenchia toda a existência com suas narrativas curtas, uma versão menor de seus densos, mais que densos romances. E amarei Clarice para sempre por isso, pois toda a vida cabe em suas páginas. Mas a vida não é feita apenas dos espaços preenchidos, ela também se mostra nos espaços entre as palavras, o silêncio que faz parte da música. E Lygia era assim para mim, em cada leitura eu via a vida e a arte se manifestando na ausência com a narrativa que preenche todas as lacunas, subitamente.

Li toda a coletânea de contos e, a cada texto, me surpreendi com a complexidade que brotava da narrativa quase singela, das personagens que escondiam um mundo atrás de atos simples e pensamentos nem sempre claros. Eram estes os espaços que o leitor preenchia com sua compreensão e sua alma. Um mergulho em águas límpidas que escondiam correntezas traiçoeiras, uma Circe nos prendendo em sua ilha repleta de almas que não mais buscam uma saída, apenas se deixam levar pela corrente.

Lygia que foi escritora, mãe, que amou e foi amada, que ganhou alegrias e suportou tristezas, que escreveu e foi reconhecida e revenciada tanto em vida quanto agora, em que sua vida nos deixou mas não sem antes nos legar livros belos, palavras que andam e saltam como felinos, elegantemente e que, ao fim, olham para trás para um último encontro de olhares antes de saltar pela janela para um longo, longo passeio pelos telhados.

Leiam Lygia, lembrem-se de Lygia, cristalina Lygia, límpida Lygia.

Obrigado por tudo, mestra.