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O BECO
No beco escuro explode a violência
eu tava preparado…
Que importa?
___ o que eu vejo é o beco.
Quando o homenzinho sentou a seu lado e pediu exatamente o mesmo uísque que ele, sentou-se do mesmo modo, quase um perfil em reflexo em franco processo distópico, ele pensou naqueles malditos livros de autoajuda disfarçados de ciência que seus amigos recomendavam, do tipo dê uma de primata superior e imite a postura do seu interlocutor. Céus, como ele odiava aquilo e, mais ainda, odiava que esses pensamentos o invadissem no único momento em que tinha alguns minutos de paz. Bebeu mais um gole e enquanto o líquido queimava ao passar pela garganta, os olhos fechados e as têmporas flutuando, ouviu aquela voz que lhe lembrou unhas arranhando uma lousa:
” Está tudo acabando, não é?”
“Tudo o que?”
“Tudo, ora, vou ter que descrever?”
” Olha, se não se importa vou sentar mais para lá e terminar o meu uísque.”
“Sem problema, aproveite enquanto pode.”
Ele se virou e esperou encontrar um olhar maníaco mas tudo que ele viu, com um frio no estômago, foi um olhar sereno, aqueles olhos brilhantes e cheios da certeza que somente alguém muito louco ou muito são é capaz de sustentar. Ele fraquejou por um momento e o homenzinho pareceu divertir-se por uma fração de segundo, mas foi quase imperceptível ou fruto de sua imaginação etílica, pois a mesma pose já retomava o controle. Agora ele sentia vontade de largar a bebida e sair bem rápido, mas virou de costas para aquele incômodo e continuou a bebericar o uísque, não daria o braço a torcer.
“Lá atrás.”
Ele se segurou para não dar um pulo, mas não conseguiu evitar virar-se como se tivesse levado um tapa:
“O quê?”
“Eu quis dizer atrás desse bar, saindo por aquela porta, você encontra a saída.”
“Para onde?”
“Para fora desse mundo, é óbvio.”
Não havia escárnio, ironia, nem um milímetro de tensão. E isso só piorou a sensação. Ele fez menção de perguntar algo, mas o homenzinho pareceu ler seus pensamentos e o interrompeu:
“É a saída, já disse, não faça mais perguntas, como se esse mundo e a sua vida fosse algo melhor que uma merda para você ficar cheio de dúvidas e questionamentos. O beco é simplesmente a saída.”
“Pensei que becos não tivessem saída.”
” Uma passagem, tudo igual mas muito diferente.”
” Só falta me dizer que é o único lugar no mundo em que posso sair daqui.”
” Oh, não, há outros, mas esse é o mais perto de você. A não ser que você queira pegar um avião para o Japão e descer a escada de uma passarela ao lado de uma rodovia, por exemplo.”
” Então é apenas andar até o fundo, no beco, simples assim?”
” E por que não haveria de ser simples? Esperava uma luz, anjinhos descendo do céu, um DeLorean deixando um rastro de fogo?”
” Como vou saber se não estão me esperando para roubar, matar, sei lá?”
“Você não sabe e aí é que está a graça, você não sabe o que te espera depois do beco.”
” Se eu não sei, então devo temer e ficar por aqui mesmo.”
” Ou, pelo contrário, não há nada a temer, pois é melhor andar e descobrir onde o beco dá.”
” OK, já ouvi o suficiente dessa baboseira, foi divertido para distrair enquanto eu terminava a minha bebida, mas agora fique feliz, você e esse beco e aquela escada maldita, bem como suas estorinhas de ficção. Adeus e foda-se.”
Os olhos do homenzinho brilharam de satisfação tao rápido que ele mal pode perceber.
” Então, até, meu caro. Pode deixar, esse uísque é por minha conta.”
“Pelo menos isso.”
Agora o homenzinho observava o homem que deixava aquele bar escuro e empoeirado, com passos de equilibrista na corda bamba, era possível, finalmente, distinguir Coltrane fazendo o sax girar notas no ar, como se o mundo fosse acabar naquele instante. A love supreme, pensou com satisfação enquanto via o homem hesitar à saída, até que ele toma o lado oposto da rua e sai. O homenzinho, então, dá-se ao luxo de um meio sorriso e apenas ele escuta a fração da fração de milésimo de segundo em que o mundo silencia e nem mesmo o sax de Coltrane é possível ouvir mais. O homem, enfim, está livre.
Mas isso não importa mais, ele ouve novos passos se aproximando e bebe mais um gole do uísque. Quando a mulher se senta e pede um gim, dois bancos depois do seu, ele se vira para ela e diz com a voz simpática:
“Dia longo?”
Ela estranha o homenzinho mas avalia que ele é inofensivo, um meio sorriso e o sinal positivo com a cabeça.
“Moça”, disse o homenzinho empertigando-se exatamente como sua interlocutora na cadeira, “acho que sei o que dizer para melhorar o seu dia, a sua vida…”