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Djaimilia Pereira de Almeida, literatura, Marília Garcia, Margareth Atwood, mulheres, poesia, romance, vozes femininas
Estava aqui olhando meu blog, espanando a poeira e as teias de aranha e constatei que minha última postagem foi em outubro do ano passado. Ufa, faz tempo, não é mesmo? Talvez nem tanto, considerando que, desde então, parece que o mundo soltou o freio-de-mão de uma carreta cheia de tijolos na descida com todo mundo dentro; a gente tentou (pelo menos eu tentei) viver a vida, trabalhar muito e até a exaustão e esquecer das pessoas que estavam no comando e só reclamar no twitter pra desabafar um pouco. Em suma, eu tentei viver. Mas eis que chega a roda viva e carrega o mundo pra lá, parafraseando Chico.
E eis-me aqui, isolado em minha casa em plena pandemia, uma coisa que eu pensava que somente em filmes e séries eu veria, evitando o contato humano o máximo possível para salvar a vida dos meus mas também de pessoas que sequer conheço, tendo de trabalhar em casa e, finalmente, conhecer a dura realidade: a casa da gente não serve apenas para comer, beber e dormir. Mas redescobri velhos prazeres da época do meu doutorado em Montpellier. Voltei a cozinhar com frequência (com o efeito colateral de beber mais vinho, meu fígado que lute), ouço mais música; inclusive enquanto trabalho, vejo mais filmes e séries e, finalmente, meu ritmo de leitura aumentou significativamente. E, com tudo isso a mente estimulada e mais tempo disponível, tive a ideia (essa irmã siamesa do vácuo mental) de voltar a este espaço para dizer a meus milhares de leitores que estou vivo e que, felizmente, minhas leituras têm sido prioritariamente femininas.
Escolhi, portanto, indicar três vozes femininas na literatura que me marcaram nos últimos tempos, dois romances e um livro de poesia, leituras instigantes não apenas para passar o tempo mas também para lembrar a você, leitor, de que as vozes femininas exprimem como nenhuma outra o assombro, a revolta, a lucidez e a clarividência tao em falta nesses dias que vivemos.
O conto da Aia – Margareth Atwood
Sei que um monte de gente já leu esse e comentou aos borbotões, muito melhor do que esse humilde escriba seria capaz de fazer mas foi uma leitura instigante e simplesmente não há como não indicar a quem não leu que acompanhe as páginas dessa distopia cada vez mais parecida com o mundo real, com as peripécias de Offred em busca de algo indefinível em um regime totalitário de matriz religiosa. No livro a aia Offred – June, seu nome antes da “revolução” que destroçou o que antes eram os EUA e depois se tornaram a república fundamentalista de Gilead – testemunha e registra esse momento sombrio em que mulheres são violentadas e mutiladas todos os dias para oferecer filhos à elite dirigente de uma república que baseia sua força no medo e na opressão. Apesar dos elementos ainda destoantes, não há como deixar de sentir um arrepio na espinha pela cada vez maior proximidade deste livro com a realidade que se descortina à nossa frente.
A canadense Margareth Atwood, já há muito cotada para o Nobel de literatura, traz uma visão cada vez próxima de uma realidade tangível através de uma república fundamentalista. Afinal, a realidade de mulheres violentadas diariamente por homens em posição de poder ou ascendência não é algo incomum, convenhamos. Para ler e refletir. Uma última observação: a série produzida pelo Hulu, excelente, expande o que é mostrado no livro e toma várias liberdades – Offred, inclusive, é muito mais corajosa do que no livro, ainda assim uma não prejudica a outra, é possível – e recomendável – ler o livro e ver a série, pois ambas se completam.
Luanda, Lisboa, Paraíso – Djaimilia Pereira de Almeida
As vozes femininas, mais que qualquer outra, sabem o que é perder. E não há lugar onde o espectro da perda esteja mais presente do que na África, mãe de todos os continentes e todos os povos. Nascida em Luanda, Djaimilia Pereira de Almeida traz no belo e melancólico Luanda, Lisboa, Paraíso uma narrativa de perdas: da identidade, dos afetos, dos laços que nos ligam a pessoas e lugares. Só o amor se mantém, ainda que sustentado por um fio, na história que une e separa ao mesmo tempo Cartola e Glória, na busca de um tratamento para o filho Aquiles, uma narrativa de esperanças perdidas e amores encontrados, em que as vozes e formas se alternam, de Cartola para Aquiles, para Glória e para todos os fascinantes tipos que transitam em volta desse núcleo. Em certos momentos a labiríntica Lisboa parece manter por um fio seu verniz de civilização, enquanto o Paraíso, em suas bordas, mostra toda a suja e comovente humanidade que é o alicerce de vidas sem fim.
A voz de Djaimilia é a voz da África, a voz da Europa, a voz de pessoas que passam, chegam, se instalam e fazem parte até que não mais façam e nada reste delas. Lindo, belamente escrito, delicado e uma leitura cativante.
Câmera Lenta – Marília Garcia
Conhecia a poeta carioca Marília Garcia na FLIP de 2016, junto com Anita Malufe e Laura Liuzzi e desde então não consigo mais me separar de sua poesia, desde 20 poemas para o seu walkman, passando por um teste de resistores e, agora, com seu mais recente livro, retomando essa poética feita do entrelaçamento entre palavras e imagens, cortes rápidos e desvios abruptos, com a interessante, ao menos para mim, ligação entre sensações: ao dar a seu livro um título que remete ao som, Marília mostra, como escrito em um de seus poemas, o perigoso encadeamento das coisas, mostrando também o arame invisível que move o poema e sua poética feita de imagens, como o mágico que pisca para o público desafiando-o a ver como o truque é feito. Você está olhando mas não está vendo.
E em Câmera lenta, alusão à visão e ao modo de ver, Marília inverte os polos e desafia o leitor a ouvir. Você está ouvindo mas não está escutando, como quando se escreve:
se a gente prestar atenção e fizer silêncio
___ se a gente prestar atenção e fizer
silêncio __
pode ser que ouça
alguma mensagem
perdida no ar.
E nessa poética feita luz e sombra, sons e silêncio, o leitor pode se perder nessa voz poética forte e única, uma das melhores de nossa literatura atual. Não é desagradável estar aqui, é apenas demasiado real, como escreve Marília, um planeta explodindo em silêncio no espaço.
São estas as vozes, mulheres fortes, sempre, seja na fúria contra a injustiça e na luta por um mundo melhor, na denúncia da opressão e da violência, seja no lamento de um mundo que se perde e se mistura e na salvação da humanidade pelo amor e pela esperança, seja na poética que desafia os sentidos e nos torna mais atentos às entranhas do mundo, da vida. Ouçam essas mulheres, ouçam todas as mulheres pois só assim seremos melhores, seremos mais iguais, seremos mais justos. Ouçam, leiam, vejam, mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas, parafraseando Chico.
Boa leitura!