“As culturas americanas mais americanas de todas foram desqualificadas desde o início, como ignorâncias. Em sua maioria, não conheciam a escrita. A Ilíada e a Odisseia, as obras fundadoras disso que chamam a cultura ocidental, também foram criadas por uma sociedade sem escrita, e suas palavras voam cada vez melhor. Oral ou escrita, a palavra pode ser um instrumento do poder ou ponte de encontro. A desqualificação tinha, e continua tendo, outro motivo muito mais realista: estamos amestrados para ouvir e repetir a voz do vencedor.”
Eduardo Galeano – O teatro do bem e do mal
Nos últimos tempos e nos últimos momentos mais que nunca não é improvável que nos peguemos nos perguntando, incrédulos, os olhos perdidos em um ponto futuro na parede: onde foi que erramos? Em qual estação nos enganamos e descemos errado? Quando foi que dobramos a esquina errada e nunca, nunca mais, achamos o caminho de casa?
Uma possível resposta a estas questões (não a única, por certo) é de que ouvimos, o tempo todo, a voz do vencedor, repetimos o que ele nos sussurrava como se fôssemos bonecos de um ventríloquo que por sua vez era boneco de outro ventríloquo e assim sucessivamente até que nada mais nos restou senão murmurar o que o distante vencedor nos dizia enquanto víamos, sem reação, o mundo e nossas vidas passarem bem em frente a nossos olhos e nosso corpo inerte.
Nessas horas lembro de Drummond e seu poema A flor e a náusea, especialmente no trecho em que me sinto, em muitos momentos da vida, descrito por ele:
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Nos últimos anos, contudo, especialmente, esse sensação passou de pessoal a geral: olhamos a humanidade fazer o que está fazendo, aderindo a autoritários e adoradores da morte, a genocidas e milicianos, que se unem a empresários inescrupulosos que tratam trabalhadores como gado ou peças substituíveis de uma linha de montagem; olhamos cada vez mais pessoas pela rua, morando na rua, comendo na rua, comendo a rua, vivendo a rua e na rua e nós, todos nós, passamos e, espantados ou sem espanto algum, olhamos para dentro de nós e descobrimos que não há nada a sentir. Não sentimos nada, perdemos a empatia e perdemos nossa casa.
Nesse momento lembro de Casa tomada, conto magistral de Julio Cortázar, da qual já foi dito que seria uma sombria alegoria do peronismo na Argentina. Com crescente assombro, o leitor acompanha o narrador contar com medo, espanto mas desconcertante naturalidade como ele e sua irmã Irene tiveram sua enorme e confortável casa, aos poucos, invadida e tomada, até que só lhes restaria viver na rua. O narrador e sua irmã, isso para mim foi o mais importante, viviam de rendimentos, não precisavam trabalhar, dedicavam-se aos livros e ao tricô, duas atividades que, como sabemos, exigem pouca ação. Conforme a narrativa avança e a casa vai sendo tomada, o leitor se surpreende: não há reação, não há luta, sequer tenta-se identificar o invasor. Fato é que o narrador e sua irmã vão sendo expulsos, ao poucos, de sua casa, até que nada mais lhes reste e, no final, eles terminam mesmo jogando a chave fora, para que outros não corressem o risco de morar naquela casa, agora tomada.
Terminei de ler o conto e, de início espantando, logo me espantei com meu próprio espanto: ora, mas não é esse o resumo de todos os golpes de revoluções, de como tiveram sucesso? Você está ali, em casa, depois de voltar com o jornal debaixo do braço e sem compreender o mundo, você percebe, então, que começam a invadir e tomar sua casa mas você não luta, você não reage, nem um muxoxo de irresignação. Você simplesmente vai se mudando para cômodos cada vez menores até que, finalmente, sua casa já está ocupada e você não pode mais voltar.
São estes os tempos em que vivemos. A atemporalidade de Casa tomada e de A flor e a náusea saltam os olhos e nos mostram como a inércia, o estupor, a incapacidade de sentir qualquer coisa que não seja apatia nos jogaram nos braços da cada vez mais onipresente estupidez (vide o post que escrevi sobre o tratado sobre a estupidez humana). Não dá para dizer que estamos na rua mas que a casa já foi em boa parte tomada, disso já não podemos ter qualquer dúvida.
Nem tudo está perdido, contudo, já passamos por isso na história e, quem sabe, ainda possamos retomar a casa, resolver os problemas que até os 40 ainda não tínhamos resolvido. E, voltando a Drummond, ver a flor nascer em meio ao asfalto, a despeito da brutalidade e da estupidez que hoje reinam e, quem sabe, com a flor volte a esperança e a casa volte a ser toda nossa:
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de
[aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco
[horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças
[avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar,
[galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, [o nojo e o ódio.