Seu trabalho principal era ganhar tempo e se concentrar em prender a respiração.
Quem realmente somos diante de nós mesmos? Quem somos quando nos olhamos no espelho da alma, aquele que tudo reflete e ignora a imagem refletida em milhões de espelhos que nos espreitam do lado de fora? O que vemos, afinal e nesta hora, nos agrada ou nos traz desespero?
Esses e muitos outros são pensamentos inevitáveis ao ler A imitação da rosa, um dos mais tensos e densos contos de Clarice Lispector. Como tantos de nós, Laura, a protagonista, esconde de todos um mundo interior repleto de conflitos por debaixo de uma aparência impecavelmente limpa, do casamento pacífico e da luta desesperada para manter a casa, os móveis, as roupas, sua vida em ordem. A ordem exterior como tentativa de acalmar a tormenta que provoca estrondos em sua alma.
Para tanto, Laura luta para se mostrar a esposa perfeita, que acompanha o marido como se fosse um bibelô e o deixa à vontade com os amigos sem que ele tenha que se lembrar de sua presença, o que ela chama de insignificância com reconhecimento. Era assim que ela entendia cumprir melhor seu papel no casamento e na vida, reduzindo-se à insignificância a ponto de parecer um dos itens de decoração de sua casa, sentar-se no sofá como uma estranha em seu próprio lar.
Sentou-se no sofá como se fosse uma visita na sua própria casa que, tão recentemente recuperada, arrumada e fria, lembrava a tranquilidade de uma casa alheia. (aqui, impossível não vislumbrar o quarto de empregada que apareceria e seria o cenário principal de A paixão segundo G.H., aquele “quadrilátero de luz” impecavelmente limpo e que perturba a ordem interna da protagonista com as consequências que podemos ver nesse romance magnífico)
Mas, como ocorre em muitos contos de Clarice, toda essa tentativa de ordem e paz, esse gosto minucioso pelo método, tudo isto é perturbado por uma rachadura, uma fissura na muralha erguida pela protagonista, com seus cabelos e olhos marrons (não por acaso uma cor de neutralidade, um ponto de passagem entre o moreno e o loiro), no fundo daqueles olhos há o que Laura descreve como um pequeno ponto, a fissura por onde se poderia ver toda a dor e sofrimento que ela carrega como um rio subterrâneo que ruge furiosamente por debaixo da terra, que permanece silencioso em sua superfície.
Por acaso alguém veria, naquela mínima ponta de surpresa que havia no fundo de seus olhos, alguém veria nesse mínimo ponto ofendido a falta dos filhos que ela nunca tivera?
Laura não queria olhar por esse buraco de fechadura em sua alma, não mais, ela já tinha estado ali e o período de internação sempre lembrado de forma enevoada no decorrer da narrativa indica que esta fissura estava à vista para todos olharem, inclusive o seu sempre atencioso mas sobressaltado marido, com seu hálito triste , como a esperar que sua esposa, novamente, ruísse de dentro para fora. Essa era a luta de Laura, não mais sucumbir, agarrar-se com todas as forças ao real, ao exterior limpo e ordeiro, ao vestido marrom com gola creme, ao contar mil vezes a mesma estória e ser repreendida por isso, a voltar tão completamente: agora todos os dias ela se cansava, todos os dias seu rosto decaía ao entardecer, e a noite tinha então a sua antiga finalidade, não era apenas a perfeita noite estrelada.
Laura não encontraria a paz na insignificância que ela tanto desejava, não nessa vida tão superficial, nesta realidade tão fina quanto o mais delicado dos tecidos, basta um arranhão para que esse tecido se rompa. E se, com Ana em Amor, o cego mascando chicletes e os ovos que se rompem na cesta detonam um processo epifânico de conflito, aqui basta, apenas, um buquê de rosas em um jarro na mesa da sala de estar.
E quando olho-as, viu as rosas. (aqui, em uma frase tão curta, Clarice coloca toda a força da descoberta e do início da perturbação pelo olhar, sua personagens sentem, sempre, mas sempre descobrem pelo olhar sua fonte de júbilo ou angústia).
E aqui se inicia o conflito interno, violento, que conduz ao final do conto. Laura se debate entre o desejo de permanecer com as rosas e ficar com tanta beleza só para si mas, ao mesmo tempo, de dá-las a uma amiga, o conflito entre o ter e o abrir mão contra a vontade, continuar neutra, marrom, fechar o ponto no fundo dos olhos pois ficar com as rosas e sua beleza significa manter aberto esse espaço de humanidade e angústia dentro de si.
Ela, afinal, se desfaz das rosas mas a falta das rosas deixam um vazio dentro de Laura:
As rosas haviam deixado um lugar sem poeira e sem sono dentro dela. No seu coração, aquela rosa, que ao menos poderia ter tirado para si sem prejudicar ninguém no mundo faltava. Como uma falta maior.
Mas não há tempo a perder, a luta interior ainda não está ganha e ela precisa se recompor para a chegada do marido. Quando a chave gira na fechadura e a porta se abre, Armando a encontra como sempre mas ele sente a tensão no ar, o medo de que algo tenha novamente se rompido e ele reviva o período de internação de Laura. É contra isso que ela luta:
Ela ia sorrir. Para que ele enfim desmanchasse a ansiosa expectativa do rosto, que sempre vinha misturada com a infantil vitória de ter chegado a tempo de encontra-la chatinha, boa e diligente, e mulher sua. Ela ia sorrir para que de novo ele soubesse que nunca mais haveria o perigo de ele chegar tarde demais.
Mas quando ela diz “voltou, Armando. Voltou”, a tensão retorna ao rosto do marido, ainda que desconfiadamente, e ele a pressiona para saber o quê, momento em que ela falta timidamente das rosas que dera, “não pude impedir”. E ela volta a seu estado de inanição que acalma o marido, ainda que ele agora exiba a aparência fatigada e curiosa, mas alerta. E ele contempla Laura se sentar em sua poltrona, reta, como uma estranha dentro de sua própria casa, como num trem, que já havia partido.
Nesse extraordinário conto podemos ver a capacidade incrível de Clarice em injetar enorme tensão a partir de visões ou situações aparentemente banais, desvelando o conflito interno de Laura, lutando para se misturar ao exterior como um objeto, enquanto as rosas com sua beleza acabam por cindir a fronteira entre externo e interno, uma beleza que faz Laura desejar imitar uma rosa quando, na verdade, tudo o que ela quer é permanecer exatamente onde está, sem partir novamente para as terras de tormenta que já tinha habitado.
Mais do que escrever sobre, muito melhor é ler esse conto tenso e brilhante de uma de nossas maiores contistas, do que eu espeto ter convencido você, leitor.
No próximo episódio de nosso evangelho falo de Feliz aniversário, uma obra-prima de tensão narrativa.
Ave, Clarice.