Seja em tempos de paz ou em tempos de guerra, temos uma tendência quase instintiva a nutrir um ótimo conceito de nos mesmos. Gostamos de narrativas edificantes, de superação, aquelas que hoje aparecem nas redes sociais da vida. Mas essa autoindulgência é muito anterior ao computador. Cometemos atos inominaveis em favor do que acreditamos ou apenas por puro instinto de sobrevivência mas gostamos de acreditar que o fizemos por um bem maior, nosso ou mesmo da humanidade.
As Eumênides (na mitologia romana) ou Furias (na mitologia grega), segundo Thomas Bulfinch em O livro de ouro da mitologia eram deusas que habitavam o submundo e que eventualmente vinham à superfície para punir os homens que escapavam ou zombavam da justiça pública. Alecto, Tisifone e Megera eram seus nomes. Ésquilo as chamou em uma de suas peças de benevolentes.
Então me pergunto: quanto tempo passamos no mundo virtual enaltecendo nossas pretensas qualidades e apontando os defeitos alheios com medo das benevolentes nos alcançarem com sua pérfida vingança? Por isso não narramos toda a historia pois narra-la, de forma crua e sem ressentimentos do mal que fizemos, em muitos casos, poderá soar como um canto evocativo das Furias.
É o que faz o narrador Maximillian Aue, ex-oficial nazista e então empresário bem estabelecido com família no inicio de As benevolentes, o livro que este blog recomenda como leitura para entender melhor o conceito de banalidade do mal desenvolvido pela filosofa Hannah Arendt e tão citado, mesmo por quem nada leu do assunto. Logo de inicio, Aue adverte que não se arrepende do que fez durante a guerra:
Não me arrependo de nada: fiz meu trabalho, e ponto final; quanto aos meus assuntos familiares, que talvez eu conte também, dizem respeito apenas a mim; quanto ao resto, la para o final eu decerto passei dos limites, mas então eu não era mais o mesmo, vacilava e alias o mundo inteiro vacilava ao meu redor, nao fui o único a perder a cabeça, admitam.
Esse parágrafo, logo no início do livro, dá bem a medida do que virá a seguir: uma narrativa caudalosa mas sem remorsos. Aue não é um autômato e entrará em conflito com muitas das decisões tomadas por ele ou por seus superiores, irá desenvolver temores, pânicos e crises físicas que quase o fazem sucumbir na loucura da guerra. Nem por isso deixará de fazer o que considera seu trabalho ou manifesta qualquer arrependimento.
Assim como, segundo Marx, o operário é alienado em relação ao produto de seu trabalho, no genocídio ou na guerra total sob sua forma moderna o executor é alienado em relação ao produto de sua ação.
A narrativa prossegue permeada de detalhes técnicos, não é uma leitura fácil mas ao mesmo tempo fascina o leitor, por sua crueza e ao mesmo tempo por sua agilidade. Aue nao demonstra pudor algum ao jogar na cara do leitor que este o narrador nao são tão diferentes assim:
Nossos subúrbios tranquilos pululam de pedófilos e psicopatas, nossos albergues noturnos, de destrambelhados megalômanos; alguns deles tornam-se efetivamente um problema, matam dois, três, dez, até mesmo cinquenta pessoas – depois esse mesmo Estado que se serviria deles sem pestanejar durante uma guerra os esmaga como mosquitos empapados de sangue. Esses homens doentes não são nada. Mas os homens comuns de que o Estado é constituído – sobretudo em épocas instáveis -, eis o verdadeiro perigo. O verdadeiro perigo para o homem sou eu, é você.
Essas bofetadas que Aue desfere no leitor permeiam toda a narrativa, ainda assim é impossível deixar de acompanhar as peripécias desse oficial nazista por uma guerra que ele mostra de forma insana e da qual ele escapa dos maiores perigos como em uma antiga sátira menipeia, por pura sorte, por estar no local certo na hora certa, ou metendo-se em enormes confusões por estar no local errado na hora errada. Aue não poupa o leitor, inclusive, de suas preferências sexuais (ele é homossexual e nutre uma paixão incestuosa pela irmã), tudo isto narrado com a peculiar crueza e a precisão cirúrgica desse narrador fascinante. Mesmo quando é encarregado de supervisionar os campos de concentração, já na reta final da guerra quando o mundo ameaçava sucumbir para os nazistas e a solução final era acelerada, ele nao se furta de comparar o que la acontecia com a vida em tempos sem guerra:
Porém, pensando bem, como eu tentava fazer bebendo meu pretenso chá na sala da Haus der Waffen-SS, aquilo não era uma representação da vida social em seu conjunto? Livre de seus ouropeis e de sua vã agitação, a vida humana nao passava disso; depois que reproduzíamos, havíamos atingido a finalidade da espécie; e, quanto à nossa própria finalidade, era um mero engodo, um mero estímulo para nos levantarmos de manhã; porém, se examinássemos a coisa objetivamente, como eu julgava fazê-lo, a inutilidade de todos esses esforços era patente, assim como o era a própria reprodução, já que servia apenas para produzir novas inutilidades. E assim conclui: o campo em si, com toda a rigidez de sua organização, sua violência absurda, sua hierarquia meticulosa, nao seria apenas uma metáfora, uma reductio ad absurdum da vida de todo dia?
Embora Aue seja uma personagem fictícia, em seu caminho ele cruza com algumas das principais figuras que transitavam em torno de Hitler: ele toma contato com Himmler, por exemplo, com Mengele e principalmente com Eichmann; ele não é descrito por Aue como a encarnação do mal, ou como a personificação da banalidade do mal, mas como um funcionário eficiente e muito consciencioso de seus deveres. Algum que, como o próprio Aue descreveria, poderia ser um alto dirigente de uma grande empresa privada.
Nesse sentido, Zigmunt Bauman faz um relato preciso dessa situação no excelente Cegueira moral, livro que já comentei aqui e cuja leitura recomendo. Afirma o filósofo polonês:
Lendo As benevolentes, publicado por Jonathan Littell em 2007, pode-se descobrir uma critica velada à interpretação comum, endossada pela própria Hannah Arendt, da tese da “banalidade do mal”, ou seja, a hipótese de que o vilão Eichmann era um ” homem insensato”.
Do retrato de Littell, Eichmann emerge como qualquer coisa, menos um insensato seguidor de ordens ou escravo de suas próprias paixões básicas. “Não era certamente o inimigo do gênero humano descrito em Nuremberg”, ” tampouco era uma encarnação da banalidade do mal”; pelo contrário, era ” um burocrata de grande talento, extremamente competente em suas funções, com uma envergadura incontestável e um considerável senso de iniciativa pessoal”. Como gerente, Eichmann seria decerto o orgulho de uma prestigiosa firma europeia (incluindo, pode-se acrescentar, as empresas com proprietários ou grandes executivos judeus).
E assim prossegue Aue em sua narrativa até um final alucinante que coincide com o fim da guerra e do Reich de Hitler, com uma cena magistral que não conto para poupar o leitor que terá de lê-la se quiser descobrir, com um final no qual o narrador admite, finalmente, que havia evocado as Benevolentes e sua vingança para si. Aue nao esperava narrar para desabafar ou libertar, ele queria, ao fim e ao cabo, colocar para fora a escuridão na esperança de que ela o tragasse. E a nós também.
Ao final da leitura, acredito, é possível chegar a uma conclusão aterradora: a de que, afinal, eficientes oficiais nazistas, precursores de um genocídio sem precedentes na historia da humanidade, não são tão diferentes dos grandes CEOs do nosso mundo capitalista pós-moderno. Dedicação, eficiência, obsessão por resultados e uma absoluta falta de empatia pelo próximo, tratando pessoas como números, ou dados. Burocratas armados das melhores intenções continuam matando mundo afora e tudo o que fazemos é assistir, quando muito munidos de nossa indignação de rede social. Quantas cidades possuem seus campos de concentração com outros nomes e, ainda, são alvo de limpezas periódicas a fim de que a ordem seja preservada, em nome de um bem maior? Aue nos deixa com um gosto amargo na boca. Somos tão diferentes assim dos maiores monstros da humanidade?
O livro vencedor do prêmio Goncourt de 2006 é uma leitura caudalosa mas muito instrutiva para os dias que vivemos hoje, em que ideias irmãs do nazismo voltam a reivindicar um lugar de normalidade no nosso imaginário. Para quem quiser conferir, basta clicar aqui para ver uma reportagem do ator Thiago Fragoso, que interpreta Aue em recente montagem de As benevolentes.
Aproveitem e boa leitura!