Uma nova religião, por Ana Martins Marques
20 domingo mar 2022
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in20 domingo mar 2022
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in19 sábado mar 2022
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Apocalipse now, cinema, Francis Ford Coppola, Glória feita de sangue, guerra, literatura, Nascido para matar, O fim do homem soviético, Russia, Stanley Kubrick, Svetlana Aleksievitch, União Soviética
Como entender uma guerra? Mais ainda, como entender e, entendendo, identificar-se com o sofrimento de quem vê pessoas queridas morrerem bem à sua frente, com a angústia de quem precisa deixar toda uma vida para trás só para se manter vivo e proteger os seus? Como era antes eu não tenho ceteza mas posso dizer de hoje: nossa comoção, em geral, dura o tempo de uma rápida leitura das notícias, o tempo suficiente para escrever um tuíte ou uma postagem no instagram, para depois voltarmos a nossos afazeres, temos um casa pra limpar, contas a pagar, filhos pra cuidar e um almoço para fazer enquanto a morte e seu circo de horrores do outro lado do mundo não vem nos assombrar.
Mas é possível entender o sofrimento de pessoas que sequer conhecemos sem entender o sofrimento de cada um? Para mim, talvez essa seja a chave do enigma: a guerrra vista pelos livros de história como um jogo de políticos irresponsáveis e militares insensíveis pouco nos diz, é preciso compreender a guerra como o sofrimento de cada um, como se fosse uma corrente de sofrimento e dor que percorreria o mundo até voltar a nós. E todo o terror de matar outros seres humanos e morrer por coisas intangíveis seria, finalmente, compreendido, como uma epifania, a máquina do mundo de Drummond se abrindo para a nossa consciência.
Isso não vai acontecer, contudo, não aconteceu antes quando vivíamos mais instruídos e atentos, não será agora nessa época em que as pessoas são especialistas em nada e opinam sobre tudo e em que a atenção do ser humano dura menos do que um minuto que vai acontecer. Mas nem tudo está perdido ainda, há quem queira compreender o que, de fato, é a guerra e porque temos que entender isso para que possamos nos dar conta de que a guerra, qualquer uma, nada tem de heroico ou belo, é um lamaçal de sangue e vísceras, de vidas destruídas e ódio concentrado. Nada há de belo na guerra mas lembrei de três filmes e, especialmente, um livro, que podem lançar uma luz em cabeças obscuras.
Em “Glória feita de sangue” (1957), um Stanley Kubrick que ainda não era o titã cinematográfico que depois se revelaria faz um filme poderoso e um libelo contra a inutilidade da guerra e a confirmação do velho ditado de que a guerra seria a política por outros meios. Kirk Douglas encarna o Coronel Dax que, a contragosto e por pressão de superiores, ordena um ataque a uma trincheira alemã na primeira guerra mundial. Quando a incursão termina em um massacre, uma corte marcial é formada para punir três soldados e manter as aparências, poupando os verdadeiros responsáveis. Um filmaço que vale por uma aula de geopolítica e de como decisões estúpidas tomadas por nababos fardados podem custar vidas que eles sequer conhecem e com as quais não se importam.
Já em “Nascido para matar” (Full metal jacket, 1987), o mesmo Kubrick mergulha na mais emblemática e cinematográfica das guerras, a do Vietnã, um atoleiro de onde, até hoje, os americanos não saíram, vide a saída desastrada do Afeganistão há pouco tempo. Neste filme que pode ser dividido em duas partes, na primeira conhecemos o soldado Davis (Matthew Modine), chamado de Joker, participando do treinamento para embarcar rumo ao inferno da guerra mas conhecendo o inferno já no treinamento sob o comando o sádico sargento Hartman (uma atuação devastadora de R. Lee Ermey) com um desfecho trágico para ele e o soldado Lawrence (outra atuação espetacular do jovem Vincent D’Onofrio, que os mais novos conhecem como o Rei do Crime da série Demolidor). Na segunda parte, Joker conhece os horrores e a inutilidade da guerra como jornalista e soldado, avançando em meio a um cenário que faz lembrar uma Divina Comédia sem purgatório ou céu, só a morte e o sofrimento da guerra se espalham pelo caminho. Chocante do primeiro ao último minuto, um dos grandes filmes de um dos maiores diretores de todos os tempos, alguém que desumanizava seus personagens até nos mostrar o quanto é essencial ser humano.
Finalmente, em “Apocalipse now” (Francis Ford Coppola,1979) a guerrra (no caso novamente a do Vietnã) se mostra como é mais possível que a vejamos, com um distanciamento quase onírico, com o capitão Willard (Martin Sheen) nos guiando uma caminhada lisérgica em que a violência é vista com o horror de um pesadelo em um parque de diversões macabro, tudo isto para embrenhar-se na selva a mando de seus superiores para localizar a matar o Coronel Kurtz (Marlon Brando), cuja versão oficial é de que teria enlouquecido e se embrenhado nas selvas do Camboja, onde comandaria um grupo de fanáticos. Livremente baseado em “Coração das trevas”, o magnífico livro de Joseph Conrad, é um filme que mostra a guerra como loucura, uma geradora de fanatismos e morte, até mesmo no coração da mais obscura selva. Tão bom quanto ver esse filme fantástico é se inteirar da produção, certamente uma das mais tumultuadas da história do cinema. Tudo que poderia dar errado, deu, tempestades que devastaram o local de filmagens, problemas com as autoridades locais, com os atores (Brando é um capítulo à parte com seu comportamento insuportável e megalomaníaco) e muitas outras coisas que quase enlouquecerram Coppola e o levaram à falência. Tudo isso está no documentário “Hearts os Darkness: a filmmaker appocalipse”, de Eleanor Coppola, disponível no Belas Artes a la Carte.
Mas voltemos às minhas divagações do início para falar do livro que vou indicar. Mais que ler livros de história e ver noticiários, acredito que compreender uma guerra e seu horror é aproximar-se das pessoas afetadas não apenas pela guerra, mas pelo curso da história, que anda como um gigante pisando desajeitadamente e esmagando quem fica no caminho. No caso da Rússia, para fechar o foco, não dá para entender o que está acontecendo pensando somente em Putin, em somente um personagem. É preciso, a meu ver, levar em conta que a Rússia já foi mais, já foi a poderosa União Soviética e que muita gente que lá vivia nunca conheceu outra vida que não fosse o modo de viver comunista, militarizado ao extremo e no cotidiano de cada um, é algo martelado nos ossos e que não se vai de uma hora para outra. Ocorre que o comunismo e a União Soviética desapareceram de uma dia para outro, as pessoas dormiram sovietes comunistas e acordaram russos em transição rápida para a economia de mercado. E para compreender como isso se deu livros de história não bastam. É preciso ouvir as vozes daqueles que se adaptaram e daqueles que nunca aceitaram as mudanças.
No início, pareceu algo realmente novo e bom mas o tempo mostrou que os russos, hoje, são mais pobres e menos poderosos que seus antepassados soviéticos (vide artigo na Folha de hoje, que pode ser lido aqui). Putin apenas sentiu o momento, canalizou a insatisfação, deu a partida da guerra e, como bom tirano, persegue quem se opõe à guerra como traidor da pátria. E como foi possível chegar a esse ponto é o que se vê ao ler “O fim do homem soviético” de Svetlana Aléksievitch, autora cuja leitura de todos os livros é mais que recomendada. A nobel de literatura colhe depoimentos no calor dos fatos, pouco tempo depois da implosão da Unão Soviética e o que salta aos olhos é um povo que, de uma hora pra outra, foi simplesmente despejado de um modo de vida e que, em geral, não sabiam o que fazer de agora em diante. O que eles viviam sob o regime comunista não era primoroso, era espartano, com poucos recursos e muito policiamento ideológico, perseguições e prisões na calada da noite ou mesmo à luz do dia. Mas esta era a vida deles e eles não conheciam outra. Muitos se suicidaram, outros parecem mortos e vida em seus relatos.
Porque é que há no livro tansos relatos de suicídios, e não dos soviéticos comuns, com biografias soviéticas comuns? Afinal de contas as pessoas também se suicidam por amor, por velhice, sem mais nem menos, por interesse, pelo desejo de descobrir o segredo da morte…Procurei aqueles em que cresceu firmemente a ideia, que a interiorizaram de um modo impossível de erradicar – o Estado tornou-se o seu cosmos, substituiu tudo, até a sua própria vida. Não conseguiram sair da grande história, despedir-se dela, ser felizes de outro modo. Mergulhar…perder-se na existência privada, como acontece atualmente, em que o pequeno se tornou grande. O homem quer apenas viver, sem uma grande ideia.
O que emerge dos relatos lidos nesse que é, para mim, o melhor livro da autora bielorrussa, junto com “Vozes de Chernobil” é de que muitos não aceitaram a transição para o liberalismo, alguns se adaptaram e enriqueceram (partes deles os oligarcas hoje enquadrados por Putin e alvo de sanções pleo mundo após o início da guerra) e outros, finalmente, embarcaram porque não havia outra opção. A vida cotidiana, miúda, no entanto, pode não ser suficiente e o mandatário russo evoca a grande Rússia do tempo dos sovietes para impulsionar popularidade e apoio em uma guerra, ainda que a população, hoje, esteja mais pobre. É preciso ouvir as pessoas, ler os seus relatos e o livro de Svetlana é um testemunho valioso de um tempo já extinto mas que parece ainda ter alguns espasmos nos dias atuais.
Entender o horror da guerra, entender as pessoas e porque a guerra, às vezes, parece um mundo melhor que a vida que levam, talvez estes filmes e este livro ajudem a entender. E, entendendo, talvez sejamos menos intolerantes e precipitados em nossos julgamentos. A quem se aventurar, bons filmes e boa leitura!
A propósito, o primeiro filme citado vc encontra no Prime Video da amazon, o segundo no HBO MAX e o terceiro no Belas Artes à la carte e no youtube para locação, baratinho.
Por hora é só, volto quando der na telha, faça leitura, não faça guerra, continue a usar máscara pois a pandemia não termina porque político quer se vacine, deixe de ser tapado e pare de olhar para o próprio umbigo. Até a próxima.
08 terça-feira mar 2022
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inVoltando do meu exílio para o primeiro post de 2022 pra dizer que não dá pra desejar feliz dia das mulheres quando tantas ainda são humilhadas, menosprezadas, agredidas ou mortas só por serem mulheres.
Não dá pra desejar um feliz dia a quem é assediada e tratada como uma boneca inflável em ônibus e trens da vida, a quem é acusada de ter colaborado para ter ocorrido assédio, estupro ou mesmo um assovio indecente na rua por causa “do jeito que ela estava vestida”.
Não dá pra desejar um feliz dia a todas mortas brutalmente por maridos e companheiros, estupradas por pais, tios e primos, por colegas de trabalho ou chefes que ganham o dobro pra trabalhar a metade do que elas trabalham e, ainda, serem demitidas pelo “risco” de engravidarem e prejudicar a empresa.
Não dá pra desejar um dia feliz a quem não pode dispor do próprio corpo como bem entender por conta de leis escritas por homens brancos cidadãos de bem, a quem é tratada como histérica quando se revela enquanto o homem é elogiado pela energia e iniciativa, não dá pra desejar um feliz dia a quem é tratada por puta quando deseja enquanto o homem é encorajado e elogiado pelo tesão como macho alfa da matilha.
Por esses e outros motivos não desejo um feliz dia das mulheres mas um dia de pensar e refletir sobre o que nós, homens, podemos fazer para não matarmos tantos corpos e sonhos femininos, para sermos menos injustos, cruéis e desiguais. O dia é das mulheres, o questionamento deve ser de todos.
A mulher é uma construção – Angélica Freitas – um útero é do tamanho de um punho
Que a mulher seja menos conjunto habitacional e mais uma casa de tijolos à vista, dona de si e do mundo, como deveria ser.