Impressiona saber que nesse espaço já escrevi sobre romance, poesia, crônicas e até ensaios, que já tenha publicado algumas narrativas minhas mas que, lamentavelmente, ainda não tenha escrito sobre uma de minhas paixões, o teatro. Hoje, com esse post, tento reparar esse erro, ao menos em parte.
O título é extraído de uma citação de Shakespeare, de quem tenho lido as principais peças, obra e graça da tecnologia dos e-books que me permitem ter acesso mais fácil a tais textos e me permitem reparar esse outro erro lamentável. E nas peças do bardo, invariavelmente, o entrelaçamento entre vida e palco é inevitável, um como extensão do outro, um diálogo eterno que só a mais presencial das artes permite. Se a vida é som e fúria, como dito em Macbeth, o palco nos permite contemplar o olho do furacão.
E, para aqueles que fazem do teatro sua vida, aqueles que trouxeram luz e iluminação a nossas vidas ao mesmo tempo em que iluminavam a própria existência, esses, os atores, são seres verdadeiramente especiais. Eu me refiro, é claro, aos verdadeiros atores que fizeram do teatro sua profissão de fé, pois é a isso que me refiro, amar o teatro é nunca ter o suficiente, tanto pelo lado financeiro quanto pela realização plena. Mas, ao mesmo tempo, é sentir-se pleno e realizado pelo contato com o palco e o olhar atento do público.
Dois gigantes, dois titãs do nosso teatro tem livros muito bons contando suas trajetórias e é deles que o LCEOV se ocupa hoje: o primeiro é Prólogo, ato, epílogo (Companhia das letras), a linda trajetória da nossa primeira-dama dos palcos, Fernanda Montenegro, contada pela própria, em uma narrativa emocionante, em que a atriz e agora escritora (com a colaboração da jornalista Marta Góes) volta no tempo, com a chegada de seus ancestrais ao Brasil, vindos da Italia, fugindo da guerra e da miséria com a esperança de dias melhores no Brasil. Depois a autora prossegue rememorando infância, formação e sua descoberta interior como atriz, as ideias, as colaborações, os percalços, as dificuldades, os momentos de drama e comédia, como as máscaras que simbolizam o teatro. Uma narrativa repleta de carinho e sensibilidade que são a marca dessa magnífica atriz, alguém dotado de profunda religiosidade mas que nunca deixou de venerar o palco e de abrir-se para novas experiências. Primeira-dama nos palcos e na vida, Fernanda Montenegro é um farol para todas as gerações de artistas que vieram e ainda virão e esse livro é um testemunho de uma vida dedicada à arte com intensidade e, ao mesmo tempo, muito amor. Um livro belo, comovente e com uma disposição visual caprichadíssima, acompanhado de fotos que se agregam perfeitamente à narrativa. Uma leitura indispensável para quem ama não apenas o teatro, mas a arte.
O outro livro a ser indicado aqui não é tão rico do ponto de vista narrativo mas ainda assim um registro valioso do maior ator que já pisou em um palco no país. Em sem comentários (Cosac Naif), o grande Paulo Autran mostra com belíssimas fotos e narra com sua objetividade e clareza a participação em dezenas de peças, encenando textos num arco absurdamente largo, indo da tragédia grega como em Édipo Rei de Sófocles a Visitando o Sr. Green de Jeff Baron, já no ano de 2000, em uma trajetória que se iniciou nos anos 40 do século XX, passando por autores como Gorki, Shakespeare, Arthur Miller, Jean-Paul Satre e tantos outros. Os relatos de Paulo são sucintos mas muito claros só que, aqui, diferente do livro de Fernanda Montenegro, as palavras importam menos: a edição rica em fotos belíssimas em material nobre trazem imagens que são a história do teatro brasileiro, com Paulo Autran em todas a sua esplêndida trajetória. Um livro para ser avidamente lido e demoradamente apreciado em sua beleza.
Infelizmente, nesses tempos de pandemia em que, antes disso, o vírus fascista já debilitava a arte, os teatros encontram-se fechados, os atores reclusos. E não há live que substitua o prazer de ir ao teatro, de estar mais perto dos atores, de perder o fôlego com atuações e textos inesquecíveis, que nos fazem sentir mais humanos e vivos do que quando chegamos. Afinal, o mundo é um palco e somos os atores de nossa existência. Que, quando descer o pano, consigamos sentir a paz desses grandes atores que veem o aplauso e sentem a felicidade das falas certas que tocaram o coração da plateia.
E, para encerrar, vou me dar ao trabalho de transcrever o poema de Wislawa Szymborska que é meu favorito dela e que melhor descreve o que é esse palco da vida:
Impressões do teatro
Para mim, o mais importante na tragédia é o sexto ato:
o ressucitar dos mortos das cenas de batalha,
o ajeitar das perucas e dos trajes,
a faca arrancada do peito,
a corda tirada do pescoço,
o perfilar-se entre os vivos
de frente para o público.
As reverências individuais e coletivas:
a mão pálida sobre o peito ferido,
as mesuras do suicida
o acenar da cabeça cortada.
As reverências em pares:
a fúria dá o braço à brandura,
a vítima lança um olhar doce ao carrasco,
o rebelde caminha sem rancor ao lado do tirano.,
O pisar na eternidade com a ponta da botina dourada.
A moral varrida com a aba do chapéu.
A incorrigível disposição de amanhã começar de novo.
A entrada em fileira dos que morreram muito antes,
nos atos três e quatro, ou nos entreatos.
A volta milagrosa dos que sumiram sem vestígios.
Pensar que, pacientes, esperavam nos bastidores
sem tirar o trajes,
sem remover a maquiagem,
me comove mais que as tiradas da tragédia.
Mas o mais sublime é o baixar da cortina
e o que ainda se avista pela fresta:
aqui uma mão se estende para pegar as flores,
acolá outra apanha a espada caída.
Por fim uma terceira mão, invisível,
cumpre o seu dever:
me aperta a garganta.
Leiam sobre o teatro, conheçam nossos atores, vão ao teatro, sintam o que só o teatro pode proporcionar, a emoção de uma vida com a proximidade de um abraço, a vida em alguns minutos.
Boas leituras, boas peças, merdas a todos vocês!