“Tanto em pintura como em música e literatura”, escreveu Clarice, “tantas vezes o que chamam de abstrato me parece apenas o figurativo de uma realidade mais delicada e mais difícil, menos visível a olho nu.” (Todos os contos, p. 23)
Ao começar esse projeto de um Evangelho segundo Clarice, fiquei aqui pensando em como iniciar, qual ponto de vista adotar, e me senti como os outros evangelistas, aqueles da Bíblia, mais famosos que este pobre escriba. Imagine o trabalho que os caras tiveram, pelo que sei só Mateus e João conviveram com o biografado, o que não retirou a força de Lucas e Marcos, que escreveram, por assim dizer, de orelhada. Ora, então é o que farei: desculpem, desde já, as orelhadas deste humilde evangelho.
E, chegando à literatura, posso dizer que é muito mais fácil analisar a evolução de Clarice agora que tudo já foi escrito sobre ela, que tanta análise boa foi feita. Deste ponto de vista, O triunfo é o ponto inicial de uma escritora que se tornaria uma das maiores do século XX, mas ainda com a ingenuidade e a simplicidade de uma menina publicando pela primeira vez.
Pelo dedo já era possível medir o tamanho do gigante, contudo, e este conto de estreia, publicado em 1940, mostra a jovem de apenas 19 anos dando uma mostra de alguns temas que seguiriam toda a sua carreira, seu modo peculiar de literariar.
Uma primeira coisa que me chamou a atenção foi, justamente, a questão dos olhos, do olhar: as personagens clariceanas seguiriam uma longa trilha da descoberta pelo olhar, a partir da Luísa desse conto, passando pela Joana de Perto do coração selvagem, a Virgínia de O lustre. Em O triunfo, antes do olhar, nada existe.
“O calor do sol e sua claridade enchem o quarto. Luísa pestaneja. Franze as sobrancelhas. Faz um trejeito com a boca. Abre os olhos, finalmente, e deixa-os parados no teto. Aos poucos o dia vai-lhe entrando pelo corpo. (…) De repente, seus olhos crescem. Luísa acha-se sentada na cama, com um estremecimento por todo o corpo. Olha com os olhos, com a cabeça, com todos os nervos, a outra cama do aposento. Está vazia.”
Outro aspecto que se seguiria na obra de Clarice é a descoberta pela mulher de sua força: antes subjugada e esmagada pela suposta superioridade intelectual e também social do marido, Luísa descobre que é, na verdade, o elo mais forte. Uma força que nada tem a ver com a percepção do exterior, mas de uma descoberta interior. A certeza manifestada por Luísa ao final do conto nada tem de racional, não se ampara em fatos. Luísa, como a Joana que lhe sucederia, é intuição e descoberta. Ao ser abandonada, desesperar-se para depois reencontrar-se, Luísa não descobre o mundo: o mundo, representando pela água, o elemental libertador, é instrumento da descoberta de si, da existência e da força.
Outra característica: a luz que varre a escuridão e amplia aos olhos o que antes não se via. O elemento luz, tão presente em A paixão segundo G.H., aqui aparece em estado embrionário.
“A sala de jantar estava às escuras, úmida e abafada. Abre as janelas de uma vez. E a claridade penetra num impeto. O ar novo entra rápido, toca em tudo, acena a cortina clara. Parece que até o relógio bate mais vigorosamente. Luísa queda-se ligeiramente surpresa. Ha tanto encanto nesse aposento alegre. Nessas coisas de súbito aclaradas e revivescidas.”
O ato final de Luísa, a rebeldia puramente física de lavar roupas vigorosamente em resposta à arrogância intelectual do marido que a abandonou, elevando a temperatura até que resolve tirar a roupa e tomar contato com a água, o gesto libertador pela descoberta da força que a faz acreditar no retorno.
“Subitamente, surgiu-lhe uma ideia. Tirou a roupa, abriu a torneira até o fim, e a água gelada correu-lhe pelo corpo, arrancando-lhe um grito de frio. (…) Um momento ficou séria, imóvel. O romance inacabado, a confissão achada. (…) Um morno raio de sol envolveu-a. Riu. Ele voltaria, porque ela era a mais forte.”
Os ecos desse final podem ser encontrados, por exemplo, em Perto do coração selvagem. Tanto foi comentado e tanto ficou por comentar, e pensar que foi apenas o início…
Por ora, é isso, espero que tenham gostado o suficiente para lerem o conto, aqueles que aina não tiveram o prazer. Ou para reler, o que é sempre bom.
Fecho o primeiro capitulo desse Evangelho com um curta baseado em O triunfo, delicado e marcante como o texto, com Schumman, Billie Holyday e Beethoven como fundo. Assista aqui.
No próximo, falo de Obsessão.
Ave, Clarice.