Ultimamente poucos filmes ou livros me tiraram o chão, me deixaram seu rumo. E isso não é tão incomum assim, nem é para se desesperar. Vivemos tempos de entorpecimento e despertar desse torpor não tem sido tarefa das mais fáceis.
Mas é para isso que servem os grandes filmes (como o espetacular Eu, Daniel Blake que comentei aqui ) e os grandes livros como este que vou comentar neste espaço, o perturbador Desonra, de J.M. Coetzee, um livro que me foi recomendado por outro blog e cuja leitura (do blog e do livro) recomendo veementemente.
O nome original do livro é Disgrace, palavra que no original tem a tradução direta de desgraça (título que levou na tradução portuguesa) mas prefiro a solução encontrada pelo tradutor José Rubens Siqueira, trazendo a palavra Desonra como uma epígrafe de todo esse livro, pois é disso que Desonra trata, ou seja, a perda do conceito de honra, algo que nos parece em muitos momentos tão lógico, tão completo mas que, submetido a uma situação limite, qualquer uma, perde todo o sentido, torna-se uma quimera.
E as palavras, então, como se mostram insuficientes para abarcar a existência e definir a complexidade da vida humana:
Embora dedique diariamente horas e horas à nova disciplina, acha ridícula a primeira premissa constante da ementa de Comunicações 101: ” A sociedade humana criou a linguagem para podermos comunicar nossos pensamentos, sentimentos e intenções”. Sua opinião, que ele não ventila, é que a origem da fala está no canto, e as origens do canto na necessidade de preencher com som o vazio grande demais na alma humana.
Quem expressa esse contundente ponto de vista é o personagem principal do livro e também seu inconstante narrador, o professor de literatura David Lurie, personagem que inicia cínico e ciente de suas ideias, suas certezas em uma época de absoluta incerteza e que, após envolver-se com uma de suas alunas (ecos de Lolita), enfrenta um processo administrativo no qual prefere manter suas posições morais e éticas a ceder a uma solução negociada (e humilhante, de seu ponto de vista) que lhe é proposta.
Estamos vivendo tempos puritanos. A vida privada é assunto público. A libido é digna de consideração, a libido e o sentimento. Eles querem espetáculo: bater no peito, mostrar remorso, lágrimas se possível. Um show de televisão, na verdade. Eu não concordei.
Assim como nos trechos assinalados, é possível notar em todo o livro o tom distante que o narrador adota ao narrar as próprias reminiscências: há momentos de aproximação entre Lurie e seus sentimentos, mas estes logo são abortados pelo peso absurdo dos fatos, tanto os que vem dele quanto de outros personagens. O mundo se impõe sobre nós e nos conduz à uma irreversível perda da sensibilidade, de si e do mundo. Na visão de Lurie, o ambiente acadêmico em que vive (professor de Literatura em uma universidade na Cidade do Cabo) mostra-se como um microcosmo da hipócrita sociedade em que vive:
Estamos vivendo tempos puritanos. A vida privada é assunto público. A libido é digna de consideração, a libido e o sentimento. Eles querem espetáculo: bater no peito, mostrar remorso, lágrimas se possível. Um show de televisão, na verdade. Eu não concordei.
Demitido e sem perspectivas, ele vai ao interior do país passar um tempo com sua filha Lucy e neste ambiente que a literatura romântica descreve como mais puro, Lurie conhece uma nova face do terror, um equilíbrio delicado que desmorona ao primeiro toque, diante do primeiro ato de violência desmedida que provoca no narrador tentativas de reação que esbarram no imobilismo da filha e na aceitação, tácita ou expressa, dos demais habitantes da região. Ele começa a se dar conta, então, de que vive em uma fratura, humana, social, existencial. E é principalmente de fraturas que o livro trata, estamos na Africa do Sul, onde fraturas sociais e de comportamento são parte do próprio amálgama dessa sociedade e, ao fim, do mundo em que vivemos. Pois vivemos dentro de irremediáveis fraturas, feridas que nunca cicatrizam totalmente e infeliz é o momento em que esse cenário nos é revelado e tomamos consciência dele, pois é chegado o momento de encarar a dor e a iminência da morte:
Como uma folha numa corrente, como um cogumelo que cospe seus esporos no vento, ele começou a flutuar para o seu fim. Enxerga isso claramente, e enche-se de (a palavra se recusa a desaparecer) desespero. O sangue da vida está abandonando seu corpo e o desespero está tomando seu lugar, um desespero que é como um gás, inodoro, insípido, impalpável. A gente aspira, os membros relaxam, cessam as preocupações, mesmo no momento em que o aço toca a garganta.
E aos poucos, imerso nesse ambiente rural mas nada bucólico, Lurie se dá conta da verdade que tentava evitar: não há para onde correr, não há onde se esconder, as fraturas estão por todo lado, a violência física e moral, a hostilidade, o abismo intransponível de ódio, indiferença e selvageria que parece nunca diminuir. Com Coetzee, a Africa do Sul é o mundo, como somente os grandes escritores são capazes de descrever. Em um trecho que considero chave no livro, Lucy dá ao pai a chave das portas do inferno em que ele (e todos os outros) já vive(m):
Vou contar por quê, contanto que você prometa não puxar o assunto outras vez. O motivo ê que, da minha parte, o que aconteceu comigo é uma questão absolutamente particular. Em outro tempo, em outro lugar, poderia ser considerado uma questão pública. Mas aqui, agora, não é. É coisa minha, só minha. “Aqui quer dizer o quê?” ” Aqui quer dizer a África do Sul.”
Aqui o leitor sente o peso ancestral de uma cultura, o peso aviltante e inevitável que esmaga não apenas a África do Sul, mas todos aqueles que vivem em um mundo repleto de injustiças. Vá além da África, pense nos estupros coletivos da Índia, nos massacres de refugiados da Síria e de outros lugares do mundo, nos atos insanos de um único ser humano contra outros na França, na Alemanha e em outros tantos lugares do mundo, nas inúmeras guerras sem quartel que dizimam inocentes todos os dias no Brasil, no México, na Colômbia, no mundo. Coetzee eleva no leitor um desespero local em escala planetária.
Ao final, a consciência desse desespero leva Lurie a uma espiral de insensibilidade e indiferença que se traduz no final esplêndido desse livro em que não há lugar para redenção, como somente acontece com as grandes obras da literatura. E esta é, sem dúvida, uma das maiores com que me deparei nos últimos anos.
Haveria muitas outras leituras a fazer de um livro como esse, eu ofereci apenas algumas possibilidades. Mas esse é o grande prazer da leitura, descobrir novos pontos vista e pensar, falar sobre eles. Faça a sua leitura e descubra esse grande, enorme livro. Em tempos como estes que vivemos, ler Desonra é quase obrigatório para quem quer entender melhor o mundo que o cerca através de sua mais rica fonte, a grande narrativa literária. Boa leitura!