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É preciso escrever tudo agora, a plenos pulmões, dizer até a última linha, antes que os primeiros raios de sol, dourados e difusos como um colar de ouro falso, desfaçam a névoa e tornem tudo claro demais.
Então, toma o que vi:
Ela sentada, o banco do jardim como o pedestal de seu sofrimento, os olhos embaçados cobertos pelas mãos de dedos longos como serpentes, os polegares querendo abraçar a nuca. Seu choro não era convulsivo, soluçado, nada de espasmos ou gemidos, era feito de silêncio e água. No ar, o gosto de sal que trava a boca e aprisiona os pensamentos.
Mas é preciso pensar, ou não se sabe da morte e, assim, não se existe. Faço ainda mais um esforço, é preciso vasculhar os pensamentos, revolver a matéria pútrida cheirando a limpeza, aquele cheiro de eucalipto que disfarça a carcaça enterrada e escondida dos olhos.
Então, toma o que vi:
Imaginava, lá na terra do nunca de seu pouco discernimento que olhava nos olhos dele e via o mundo abrindo as portas e oferecendo todas as possibilidades. Pensou sentir um arrepio e aquela sensação que poderia ser uma febre, uma infecção, o crescimento de um tumor, mas que ela acreditava ser felicidade.
Por isso não compreendeu o modo como ele a olhou quando ela sorriu e disse sobre o que sentia, tentando descrever o que lhe ocorria, ele a olhou como se estivesse olhando o sol, mas não em deslumbramento, meu deus, mas como se o brilho lhe ofuscasse a visão e o incomodasse. Depois, um meio sorriso e ela viu o cigarro levando-o à boca.
Em um momento ela sentia novamente, mas já não era a felicidade, era um som agudo nos ouvidos, um gosto amargo na boca, o cheiro de mel e flores que lhe queimava as narinas e a visão, oh senhor, como um milagre, a fumaça do cigarro tocou seus olhos e ela, finalmente, nada mais via. Depois a sensação de que estava em um enorme e grotesco carrossel, o que está havendo, começou a orar, uma pedra de náusea lhe subiu pela garganta, nada mais lhe era coordenado, nem sua descrição, continuou orando, pensou na novena que não fez, onde ela teria errado, ela não olhava o sol, mas a antimatéria e olhar a antimatéria é ser a antimatéria, engolida, engolida, engol
Com mais esforço, é possível sair do labirinto, deixar o fauno que lá habita e descrever, como possível, o momento.
Então, toma o que vi:
As serpentes afrouxavam o abraço na nuca, se afastavam dos olhos e mostravam, finalmente, aquele brilho negro no olhar de compreensão dos que nada sabem. Levantou-se, abriu os olhos castanhos novamente, enxugou as lágrimas com as costas da mão, endireitou-se e seguiu para fora do jardim, provavelmente já pensando nos afazeres do dia.
É bom quando tudo está em seu devido lugar.