No mundo dos negócios, as lutas entre partidos não são nada. Políticos e industriais costumam se frequentar.
Ainda hoje e muito mais nesses dias de fascismo redivivo em todo o mundo, certamente em cada momento nesse vasto mundo sem rima e sem solução certamente há alguém se perguntando como diabos, afinal, chegamos a esse ponto.
Mas será que não é assim sempre, como um ciclo que invariavelmente volta para nos assombrar como num filme de terror ruim? E se assim é podemos dizer que não é obra do acaso mas o resultado de interesses convergentes, em especial de quem tem a grana com quem tem o poder, mesmo que esses últimos sejam toscos assassinos. Como ocorre agora, por exemplo.
É nisso que penso e em muito mais ao terminar a leitura de A ordem do dia, de Éric Vuillard, livro indicado nesse post. O romance do Goncourt de 2017 me chocou, principalmente, por sua desconcertante objetividade ao relatar fatos que apenas nos mostram que a história está sempre se repetindo, com algumas diferenças mas muitos pontos de contato.
Há, por exemplo, a ascensão de um regime baseado na força e na truculência, que encontrou terreno fértil no ressentimento de um povo derrotado em uma guerra e que queria novamente ser ouvido pelo mundo. E, é claro, os donos do dinheiro e titulares do prestígio, farejando o momento, não se furtam a unir-se àquela gente degenerada e violenta, sentindo que era o melhor para eles e, ainda, acreditando que poderiam manter essa gente desvairada e desprezível sob controle. Não estou falando da união entre parte do empresariado e o bolsonarismo, mas as semelhanças são impressionantes.
Éric Vuillard narra o nascimento dessa união diabólica no alvorecer do nazismo com um detalhismo impressionante e dando nome aos bois:
Assim, os vinte e quatro não se chamam nem Schnitzler, nem Witzleben, nem Schmitt, nem Finck, nem Rosterg, nem Heubel, como a certidão de nascimento nos incita a crer. Eles se chamam BASF, Bayer, Agfa, Opel, IG Farben, Siemens, Allianz, Telefunken.
E esse livro impressionante segue narrando que a história avança, ainda que aos trancos e barrancos, levando tudo em seu caminho, bem como que, mais que grandes atos de grandeza e vilania, que os tecelões do destino são, em geral, pessoas baixas, mesquinhas, atrapalhadas consigo e com os outros e, até mesmo em relação aos nazistas, capazes de lances cômicos. É o que pode-se constatar ao ler a hilariante e ao mesmo tempo desesperadora obtusidade da diplomacia britânica pré-Churchill que é enrolada por Herman Goering num surreal almoço que o alemão estende até o limite do possível enquanto os alemães preparam e executam a invasão da Áustria; também hilariante saber que a invasão da Áustria que deveria ser uma demonstração de força da máquina de guerra nazista foi, na verdade, um enorme fiasco com máquinas quebrando pelo caminho e um exército estropiado e assustado com os gritos e a fúria de Hitler, enquanto os austríacos aguardavam por dias e ansiosos por uma ocupação que demorou bem mais que o previsto para acontecer.
O final da história todos sabemos, nazistas perderam, foram caçados, alguns julgados e enforcados, outros fugiram, e assim por diante. Saber a história, contudo, não tira o prazer de ler esse livro impressionante que mostra que a diplomacia e a guerra são as duas faces de uma moeda bem desgastada, fazendo com que se conclua, sem grande surpresa mas um tanto melancolicamente, que a solução final que, para Hitler, seria uma consagração de seu ódio assassino, só foi aceito tanto por alemães quanto por judeus (o que me remete a Eichmann em Jerusalém de Hanna Arendt, com a pergunta de como um povo aceitou deixar tudo o que possuía nas mãos de estranhos e marchar placidamente para a morte) porque muitos empresários viram a oportunidade de usar mão de obra qualificada e, claro, sem nada pagar além da aquiescência a um regime de degradação e morte.
Todo mundo tinha se aproveitado de uma mão de obra muito barata. Não é, portanto, Gustav que alucina nessa noite, no meio de sua refeição de família, Bertha e seu filho é que não querem enxergar nada. Porque eles estão bem ali, na sombra, todos esses mortos.
Há muito mais a descobrir nesse livro de leitura obrigatória para entender o passado e, ao mesmo tempo, o presente e que o futuro pode nos reservar. Mas não vou tirar mais o prazer da descoberta, leiam e aproveitem.
Boas leituras!