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Em A resistência, Julian Fúks escreveu que “viver é um ato de resistência”. Se viver é resistir, a poesia pode ser considerada uma das principais trincheiras, de onde atiramos morteiros e coquetéis molotov em forma de versos para a realidade que insiste em nos esmagar e oprimir, especialmente em tempos de fascismo redivivo. A poesia, portanto, não apenas encanta e surpreende, ela também desperta, às vezes como um grito de revolta, pedindo atenção; às vezes como um gemido de dor pelo que perdemos e talvez nunca mais tenhamos de volta.
E para que não nos esqueçamos de como a poesia é importante na luta por dias melhores, o blog indica dois livros importantes demais para entender a poesia como luta:
Poesia – Bertolt Brecht – Editora Perspectiva
Com tradução e introdução de André Vallias, este lindo livro é um catatau que reúne toda a combativa e bela produção poética e um dos maiores intelectuais do século XX. Brecht viveu apenas 44 anos mas nesse período sua produção foi assombrosa: 48 peças, 3 romances, 230 contos, 6 coleções de narrativas, 1.200 artigos sobre teatro e, muito, muito mais. E no meio dessa produção impressionante, cerca de 2.300 poemas, parte deles reunidos. Brecht era um observador arguto e crítico contumaz de qualquer totalitarismo, fugiu dos nazistas, exilou-se na América e sofreu de um tédio mortal naquela terra dos Bravos. O livro tem inúmeras anotações dos diários do autor e permitem ver suas ideias explosivas, suas alterações de humor, sua idiossincrasia. Mas também há muitos, belos poemas, gritos de revolta contra as injustiças da humanidade, a opressão dos poucos mais fortes contra a maioria mais fraca.
Dentre os inúmeros e belos poemas, cada um nos chamando à consciência, podemos transcrever este:
Sobre a violência
A torrente que irrompe é chamada de violenta
Mas o leito do rio que a constrange
Ninguém chama de violento.
A tormenta que verga as bétulas
É tida por violenta
Mas o que dizer da tormenta
Que verga os trabalhadores de rua?
É livro para ter em casa, consultar sempre para que nunca nos esqueçamos pelo que lutamos e qual é a boa luta.
50 poemas de revolta – Companhia das letras
Diferente do livro anterior, este é de bolso, pequeno, mas não é menor pois o conteúdo compensa muito. É uma coletânea de poemas de diversos autores brasileiros de diversas épocas, sempre em tom denunciativo, mostrando que a poesia brasileira também foi e é de resistência, de denúncia, de dar um nó no estômago do leitor ao mostrar o que insistimos em não ver.
Há desde nomes muito conhecidos como João Cabral de Mello Neto e seu severino com letra minúscula até Vinicius de Moraes e seu operário em construção, passando por Drummond e sua flor que insiste em nascer no asfalto, mas há também autores mais contemporâneos, como o lirismo punk e agressivo de Roberto Piva, falecido semana passada, a denúncia lírica de Hilda Hilst e Ana Cristina Cesar, passando também por novos autores como Laura Liuzzi e Angélica Freitas. Um livrinho valioso que vale sempre ter na estante.
E, para encerrar a indicação de hoje, um de meus preferidos, de Mário de Andrade, refinado observador da realidade brasileira:
Descobrimento
Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.
Não vê que me lembrei que lá no norte, meu
[Deus! muito longe de mim,
Na escuridão ativa da noite que caiu,
Um homem pálido, magro, de cabelo escorrendo
[nos olhos,
Depois de fazer uma pela com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu…
Que a poesia, além de encantar, também nos desperte a consciência de que há outros como nós.
Boa leitura!