Depois de um bom tempo e muitos posts, voltamos a pregar nosso evangelho clariceano. Foi tanto tempo que tive de conferir qual o ultimo conto que eu havia comentado. Há outros contos já lidos e anotados mas estes ficam para depois. Hoje falo de Trecho, mais um dos contos da primeira coletânea de Clarice, Primeiras histórias.
E a primeira coisa que me chamou a atenção foi justamente o título: não há um artigo definido, nenhuma indicação, apenas a palavra trecho. E qual a relação que se estabelece entre o titulo e o que é narrado? Confesso que li o conto e não encontrei uma justificativa plausível, salvo a de que, em hipótese, se possa considerar que Clarice, aqui, traz um recorte psicológico, interno, tão comum em sua obra. É, pois, o trecho de uma vida dentro de alguns instantes.
Mas vamos ao conto. E, em resumo, Trecho trata de temas recorrentes na obra de Clarice desde seus primeiros contos e desenvolvidos com cada vez maior desenvoltura ao longo de sua obra: a inversão de expectativas; o papel da mulher no insuportável jogo social, representando papéis contra a sua vontade, o jogo de mascaras do qual a protagonista Flora é obrigada a fazer parte para agradar e sujeitar-se ao marido. Tudo isto embalado em uma prosa psicológica de alta densidade, amparada por elementos comuns ao universo da escritora.
O contraste entre interno e externo, claro e escuro, vida e morte, tudo já se evidencia logo no primeiro parágrafo do conto:
Realmente nada aconteceu naquela tarde cinzenta de abril. Tudo, no entanto, prognosticava um grande dia.
Reparem no jogo de antíteses dentro de um mesmo período. Aqui Clarice delimita os territórios, da vida e da narrativa. E a narrativa, aqui como na grande ficção, se sobrepõe à vida. A partir de então, o conto segue guiado por uma expectativa frustrada não pela ausência, mas pela presença do marido consigo, presença que represa seus devaneios e a traz de forma inconveniente de volta à realidade que, em verdade, ela detesta e desejaria alterar. Porque Flora, Clarice nos mostra com a clareza que somente a narrativa interna nos proporciona, esta mulher tão convencional representa para o mundo e deseja ser e estar em qualquer outro lugar, menos ali.
Flora representa, encena uma tragédia com ares de comédia mas a consciência desta situação não melhora em nada sua situação.
Flora era outra que ninguém descobrira ainda! Eis o mistério.
Essa efervescência interior, essa intensidade absurda do mundo interior em contraste com a opacidade do mundo exterior, tais elementos trazem à narrativa outro tema comum na obra de Clarice, a náusea, a reação física dolorosa diante do confronto entre dois mundos, a consciência de que todas as expectativas podem ser frustradas. E o resultado, muitas vezes, é uma amplificação insuportável da realidade que a cerca, tudo parece demais, cada som parece ensurdecedor:
“Quer dizer que estou perdida”, pensa Flora.
Ouve de início umas pancadinhas surdas, ritmadas, singulares e misteriosas, subindo do estrado da orquestra. Em efervescência crescente, como animaizinhos borbulhando em meio desconhecido, vai-se acentuando o ritmo. E de repente, do último negro da segunda fila, ergue-se um grito selvagem, prolongado, até morrer num queixume doce. O mulato da primeira fila contorce-se numa reviravolta, seu instrumento aponta para o ar e responde com um “bu-bu” rouco e infantil. As pancadinhas parecem homens e mulheres gingando num terreiro da África. Súbito, silêncio. O piano canto três notas soltas e sérias. Silêncio.
Nesse trecho brilhante e de alta carga erótica vemos Clarice no seu melhor, com a sensação de desagrado físico se convertendo em energia sexual, tudo represado no interior de Flora.
Esse êxtase é interrompido, ao final, pela presença do marido Cristiano, saudoso e admirador da mulher, sem saber que Flora, ao fim, não deseja que ele lá esteja com ela:
Cristiano, completamente feliz, aperta-lhe levemente o joelho por baixo da mesa. E Flora resolve que nunca, nunca mais mesmo, há de perdoar Cristiano pela humilhação sofrida. E se ele não tivesse vindo? Ah, então toda essa espera teria desculpa, teria sentido. Mas, assim? Nunca, nunca. Revoltar-se, lutar, isso sim. É preciso que aquela Flora desconhecida de todos, apareça, afinal.
__ Flora, eu tive tanta, tanta saudade de você.
__ Meu bem…, diz Flora docemente, esquecendo a saia curta e apertada.
Aqui, neste final, como em outros contos, o êxtase, a náusea, a revolta interior não se materializam no mundo exterior ou residem apenas em uma vaga promessa que o leitor não sabe se será cumprida. Como afirmado no início, trata-se de um conto de alta densidade interior, o mal-estar diante de um mundo que obriga mulheres a representarem papéis que lhe são atribuídos por uma sociedade machista, opressora e que vêem a docilidade e servilidade femininas como ideal de representação. Clarice era feminista em sua ficção bem antes do termo ficar famoso por aqui.
Por enquanto é isso, leiam também esse maravilhoso conto, volto no nosso próximo capítulo do evangelho com Cartas a Hermenegildo.
Ave, Clarice.