E eis que chega o momento em que este humilde blogueiro que vos escreve encerra mais um ano de vida desse pequeno espaço para falar de literatura e outras coisas de menor importância em nossas vidas. Estava aqui contando e esse ano foi, sem dúvida, o melhor em audiência: trinta e oito postagens, mais de mil visualizações, várias curtidas e alguns comentários e repostagens. Estou ainda com menos audiência que a TV Cultura (que eu adoro, não levem a mal) e das lives do covid humano, o inominável (nem preciso falar que não vi nada disso, prezo minha sanidade) mas isso é o que menos importa, minha audiência é pequena mas muito qualificada. A todos que me aguentaram e tiveram a enorme paciência de ler meus escritos, meu carinho e admiração.
Esse 2021, no geral, admitamos, foi um ano bem merda. Vivemos o auge da pior pandemia do século XXI em meio ao pior governo da história desse país. Foi uma montanha russa na qual encaramos a apavorante descida ao inferno do pânico e momentos de subida pelo morro da esperança. Não sei quanto a vocês mas chego ao final desse ano exausto e sem grandes esperanças para o ano seguinte, que só espero que atravessemos inteiros e na esperança de que 2023 nos traga melhores perspectivas. Vi pessoas conhecidas, algumas queridas, partirem em meio a tanta tristeza e fica a dor em saber que elas poderiam estar aqui se houvéssemos nos cuidado mais e, principalmente, se tivéssemos escolhido melhor quem nos governa. Fica aqui o alerta, leiam mais, informem-se melhor, saiam do zap e das redes antissociais que desinformam, muitos já morreram e outros tantos se mataram por causa disso. Em 2022 vamos nos cuidar, cuidar dos nossos e ensinar nossos filhos a repudiar toda forma de discriminação, racismo e violência, em especial contra a mulher; vamos dizer a nossos filhos que a democracia é sempre a melhor alternativa e que vale a pena lutar por ela, todos os dias.
Mas, pois sempre há um mas e que bom que é assim, mas temos livros, esses farois que iluminam nossas vidas e posso dizer que, apesar do desgaste, do trabalho intenso e das minhas várias responsabilidades nessa vida, posso afirmar que foi um ano de muitas leituras e que ler me salvou e me trouxe de volta ao mundo dos vivos. Por isso, como último ato desse ano tétrico quero indicar alguns livros e, passando em revista mental, constatei que li uma barbaridade e li de tudo, parte fisicamente, parte em e-book (outra recomendação: comprem um leitor de e-books, qualquer um, eles fazem a diferença para quem quer ler mais hoje em dia). Li ensaios, poesia, romances, biografias, filosofia, até HQs, mangás, enfim, de tudo mesmo e fico espantando ao constatar que nunca trabalhei tanto e, além de tudo, cuidei da casa, cozinhei, cuidei do meu filho e peguei no pé dele para estudar e, ainda por cima, li tanto assim. Não sei dizer ao certo o porquê ou como li tanto mas desconfio que parte desse tempo era utilizado antes na última rede social que frequentei, o twitter. Desde que a abandonei definitivamente em março desse ano meu tempo para ler se ampliou significativamente. E ainda vi filmes, séries, ouvi podcasts e muita música. Sobre esses passatempos falo outra hora, agora quero indicar alguns dos melhores livros e autores que li em 2021. Alguns aparecem em postagens, sobre outros nem cheguei a escrever, por falta de tempo mesmo mas vou indicar mesmo assim. Resolvi escolher dez para não ficar muito maçante, até porque já escrevi demais e vocês já devem estar se coçando para mudar de canal mas não toquem nesse controle remoto, eu vos imploro, pois agora o LCEOV indica os dez livros de 2021 que devem ser lidos em 2022. Vamos a eles:
- Risque esta palavra – Ana Martins Marques – Ed. Companhia das letras – no melhor livro de poesia que li neste ano, a poeta mineira retoma o quanto já havia feito e me deslumbrado em O livro das semelhanças, livro anterior dela que também tenho em casa. E desde então leio sempre essa poesia cheia de surpresas e palavras precisas, de imagens desconcertantes e que me remetem a outra de minhas poetas preferidas, Wislawa Szyborska. “Um poema não é mais/do que uma pedra que grita”. Para ler sempre, de manhã, tomando um café e curtindo a casa em silêncio e o dia que nasce com toda a sua força e sem alarde.
- Antologia da literatura fantástica – Adolfo Bioy Casares, Jorge Luis Borges e Silvina Ocampo – Ed. Companhia das letras – três dos maiores autores argentinos de todos os tempos, especialistas no tema e praticantes da literatura que subverte e desvenda a realidade por detrás da realidade reuniram nessa preciosa coletânea alguns dos melhores contos fantásticos de todos os tempos, passeando desde a antiguidade, passando por autores da era medieval e no início de nossa modernidade, em um panorama variado e fascinante, mostrando que o deslumbrante e o aterrorizante estão a um passo de distância, que o horror pode se inserir nas mais prosaicas situações, como o magnífico conto Casa tomada de Julio Cortázar, um dos melhores do livro que foi comentado neste espaço. Para ler aos poucos, com calma, boa música e um bom vinho.
- Um útero é do tamanho de um punho – Angélica Freitas – Ed. Companhia das letras – Nesses tempos de fascismo redivivo em que se tenta reavivar a imagem da mulher como submissa ao homem e em que a violência vil contra a mulher voltou a explodir, livros como este podem soar como leitura de resistência, nesse pequeno mas incrível livro que eu classifiquei em um dos meus posts como poesia de guerrilha, pois Angélica é a guerrilheira de nossa poesia atual. Em versos livres e devastadores, cada palavra um soco no estômago do machismo boçal, em versos como “porque uma mulher braba/não é uma mulher boa/e uma mulher boa/é uma mulher limpa”, dizendo a nós, machos, que nossa sanha machista-higienista não passará. É preciso ler Angélica todo dia para lembrar que o machismo e a abominável violência contra a mulher, simplesmente, não têm qualquer justificativa. A poesia, nesse caso, abre olhos e mentes e por isso é necessária.
- Contos negreiros – Marcelino Freire – Ed. Record – esse livro foi comentado em um post este ano e vale recomendar de novo a leitura da prosa ágil que equivale a um “fogo nos racistas” em forma de literatura. Assim como devemos erguer nossa voz em face da violência contra a mulher, também é necessário abrir os olhos em tempo de racismo higienista e fascista, em tempos em que o presidente nomeado de uma fundação que deveria proteger os negros e a cultura negra se mostra um racista da pior espécie. Os contos de Marcelino assim, como os romances de Jeferson Tenório (O avesso da pele) mostram que a escravidão ainda não terminou e está ali, em cada elevador de serviço, em cada quartinho de empregada, em cada invasão de morro e batida policial onde pessoas são escolhidas pela cor da pele. Todos os contos são ótimos, mas Solar dos príncipes e Meu negro de estimação são obras-primas.
- Morreste-me – José Luís Peixoto – Ed. Dublinense – desde 2020 mas principalmente neste 2021 fiquei com a sensação de que vivemos num estado de luto permanente, sempre esperando a notícias de que perdemos alguém conhecido ou até mesmo alguém que amamos. De todo modo, lidar com o luto nunca é uma tarefa fácil pois a perda de hoje nos faz lembrar de perdas passadas, nos lembra de nossa fragilidade e impermanência, nos faz sentir desamparados mas, ao mesmo tempo, nos convida a continuar pois é o que devemos fazer, é por isso que estamos aqui. Todos estes sentimentos e sensações estão condensados nesse pequeno e valioso livrinho em que o autor português relembra a morte do pai em uma prosa carregada de lirismo e momentos comoventes. Para ler até às lágrimas, de tristeza mas também de saudade e, depois, de gratidão pelo vivido pelo que ainda vamos viver. Uma linda leitura.
- Psicopolítica – o neoliberalismo e as novas técnicas de poder – Byung-Chul Han – Ed. Âyiné – e na linha do “vamos ler para entender estes tempos doidos em que vivemos” um de meus autores preferidos é esse autor sul-coreano que mora e leciona na Alemanha. Dele já tinha lido Sociedade do cansaço, comentado neste blog e outros livros dele, chegando à conclusão de que o autor às vezes se repete um pouco em seus argumentos em conclusões e, por vezes, fico com a impressão de que Han anda em círculos. Suas análises e conclusões, contudo, são inescapáveis para quem quer entender o que estamos vivendo nessa era da informação ubíqua e em que, a todo tempo, somos bombardeados por muito mais do que nossos pequenos cérebros conseguem suportar. O resultado é que vivemos exaustos e um burnout eterno, cidadãos tratados como consumidores e política tratada como marketing. Han nos mostra que somos escravos de nossos smartphones e das redes sociais, que mudaram nossa programação cerebral como um opioide virtual. As redes são o novo templo e o seu celular é novo rosário, essa imagem me impactou demais e quem quer entender, ao menos em parte, como chegamos aqui, precisa ler esse autor e esse livro é um bom começo.
- A era do capitalismo de vigilância – A luta por um futuro humano na nova fronteira do poder – Shoshana Zuboff – Ed. Intrínseca – Provavelmente o livro mais impactante que li esse ano e impossível não recomendar a leitura a todos que quiserem ter uma noção da enrascada em que o ser humano se meteu ao entregar a alma às grandes empresas de tecnologia que dirigem nossas vidas em nome do lucro em uma escala jamais vista na história da humanidade. Cheguei à autora e ao livro pelo documentário O dilema das redes (netflix), mas o livro propõe uma visão muito mais aprofundada do assunto. Denso, caudaloso e de leitura lenta, talvez não agrade a todos mas mostra-se essencial para que entendamos que não somos apenas o produto, como dito no documentário, somos fonte de extração de comportamento que alimenta a insaciável máquina de fazer dinheiro das big techs, deixando um rastro de vidas destruídas pelo caminho. Aproveitem as férias para ler com calma esse livro e nunca mais verão o uso da internet da mesma forma. Em complemento, recomendo Algoritmos de destruição em massa de Cathy O’Neill (Ed. Rua do sabão), menos denso mas ainda assim de leitura obrigatória.
- 1984 – George Orwell – Ed. Companhia das letras – em edição revista, com fortuna crítica excelente e uma seção de capas do livro em diversos países ao longo da história, vale a pena tirar o escorpião do bolso para comprar essa novíssima versão de um dos maiores clássicos da literatura em todos os tempos, cujas vendas voltam a subir sempre que regimes autocráticos retornam ao poder, como no caso de Trump nos EUA e agora, com o inominável entre nós. As imagens de Orwell são óbvias e ele não disfarça a quem se refere ao descrever o Grande Irmão, símbolo e líder incontestável de Oceânia mostrando que qualquer ditador, de esquerda ou direita, é abominável. Mas há muito mais e as ideias expostas neste livro, os meios de dominação de um povo através da propaganda agressiva e da reescrita constante da história, a perseguição implacável a inimigos do regime com a desmoralização, a eliminação moral que precede o desparecimento físico, você lê tudo isso e não tem como sentir um aperto no estômago ao ver que ainda hoje estamos em guerra com a Eurásia, ou a Lestásia, dependendo do momento e da conveniência. Leitura essencial, sempre e para entender que nunca mais devemos nos submeter a este modelo infame e que a distopia Orwelliana está a um passo de nós.
- O processo – Franz Kafka – Ed. Martin Claret – outro clássico, em linda edição, caprichada, com tradução direta do alemão e o destaque para trechos que o autor suprimiu o alterou na escrita e nos pós-escritos, mostrando a sempre atual descida ao inferno de Josef K. em sua luta para provar sua inocência em um processo que nunca esclarece o que foi feito e como se chegou à conclusão de que deveria haver um processo. Passando por ambientes sempre claustrofóbicos como escritórios, cartórios, igrejas, K. perambula para entender e quanto mais respostas busca com mais dúvidas permanece. É angustiante ver o fim se aproximar para Josef K. e nesse caso não é o fim do processo e constatar a inevitabilidade de seu destino, de que nada pode ser feito, o que K também sabe, desde o início. Para ter e ler sempre!
- O velho e o mar – Ernest Hemingway – Ed. Bertrand Brasil – e para finalizar este ano finalmente li esse outro clássico, uma narrativa de força e beleza incríveis, mostrando que a saga do velho Santiago para vencer a má sorte e finalmente fisgar um grande peixe-espada é a nossa saga, a minha, a sua, feita de dias difíceis, alegrias momentâneas, conquistas e perdas e que, no final, apesar de tudo, de tanta luta e tanta perda, que ao fim a vida ainda vale a pena. Melhor do que ficar comentando é ler, fica a dica para essa pequena obra-prima de narrativa ao mesmo tempo curta, objetiva e cheia de poesia. Um dos mais belos livros que li nos últimos anos, que também foi comentado esse ano por aqui.
Pois bem, aí estão dez dicas, haveria muito mais para indicar e comentar mas acho que já me estendi demais e por isso só desejo boas férias a quem for desfrutar, boas leituras, muito amor e carinho junto das pessoas que nos importam. Esse blog entra em recesso junto com seu autor e, quem sabe, em 2022, recomeçamos, confesso que ainda não tenho certeza se continuo ou encerro as atividades desse espaço, até pela falta de tempo para me dedicar melhor e, também, por um certo desânimo. De todo modo, aqui nos despedimos e deixo meu fraternal abraço e votos de boas leituras, leiam, cozinhem, amem, dêem risada ainda que esses tempos não nos convidem a isso mas, principalmente, leiam, pois a leitura irá nos ajudar a sair das trevas e ver alguma luz nesses dias tão difíceis.
Um bom final de ano e o melhor 2022 possível a todos nós.