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Olá a todos! Semana de Halloween, com certeza já estão todos se benzendo, evitando passar debaixo de escada e comprando docinhos para distribuir aos pestinhas que vão bater na porta de casa vestidos de Naruto como se fosse personagem de terror. Mas tudo bem, o que vale é a intenção e se tem um campo da vida e da arte em que a intenção é tudo, esse campo enorme e cerrado de plantas exóticas, esse é o do terror. Baseado nessa ideia vou falar de alguns contos ou romances assustadores mas não os tradicionais que o leitor já conhece. Nada de Drácula de Bram Stoker ou Frankenstein de Mary Shelley ou O gato preto de Poe, embora já tenha lido todos e os recomende para quem quer encarar o terrorzão clássico. Também não falarei de Stephen King, outro autor do gênero de que gosto muito, embora ache que ele escreve demais por vezes. Não, parei aqui pois quero indicar autores nossos que trouxeram o terror sob outra forma, embora não esteja explícito nos seus textos. O terror, ao menos para mim, não é feito apenas do explícito, do susto, mas do incomum, do sobrenatural e mesmo do bizarro que são silenciosos e que se infiltram pelas frestas de nossa existência, aquilo que nos assusta por dentro e que, ao vermos nos personagens que vou mostrar, podem nos aterrorizar pois são monstros do cotidiano, alguém que pode estar bem a seu lado e que poderia, muito bem, ser a mais aterradora criatura e que, muitas vezes, só descobrimos a verdade quando é muito tarde. Então sem mais demora vamos lá, a contos de terror que não são de terror.
A causa secreta – Machado de Assis
De todos os contos que já li de Machado, a quem considero nosso mestre do gênero, esse é meu preferido e o que mais me assusta. Ao criar o cruel Fortunato, nos deparamos com o primeiro psicopata da literatura brasileira, um ser capaz de se fazer passar por alguém respeitável e até atencioso mas que se delicia com a dor e o sofrimento alheios. E Machado de Assis não poupa o leitor, mostrando um Garcia, o narrador indireto desse saga mórbida, a descoberta gradual da verdadeira natureza de Fortunato, que podemos comparar a um vampiro, não daqueles que se alimenta de sangue, mas da agonia de todos à sua volta, como na pavorosa cena em que o médico tortura um rato em seu gabinete, uma das mais angustiantes da literatura brasileira:
E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que
traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira
pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O
miserável estorcia-se, guinchando, ensangüentado, chamuscado, e não
acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e
estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a
fazê-lo, porque o diabo do homem impunha
medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a
última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com
os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao
descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para
salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida.
E, com a morte de Maria Luisa e a descoberta do amor de Garcia pela esposa de Fortunato, o momento em que este se alimenta da dor do amigo traz um dos maiores finais da literatura, de qualquer literatura:
Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por
alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte
espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento que
Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da
amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, notese; a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas
dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento.
Olhou assombrado, mordendo os beiços.
Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas
então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam
conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e
irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo
essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente
longa.
Amor – Clarice Lispector
Os milhares de nove leitores que me acompanham nesse espaço já notaram que tenho escrito sobre os contos de Clarice e sobre esse que é um dos melhores dela eu já escrevi aqui, mas no meu texto anterior analisei outros aspectos não diretamente ligados ao clima de terror que Ana enfrenta ao ver o mundo desmoronar ao redor de si e que, como nos bons contos e filmes de terror, a derrocada é gerada por um evento banal (o cego mascando chicletes e os ovos que se quebram dentro da sacola), jogando Ana numa espiral de vazio e desespero que prende o leitor como um abraço de afogado. E quando ela tenta se refugiar no jardim, lá descobre que a beleza abriga o terror nos detalhes:
Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.
(…) A crueza do mundo era tranquila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos. (…) As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. (…) O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.
Em Clarice, não apenas nesse conto como em vários outros, a Casa de Usher que desmorona não está apenas por fora, não apenas Ana como diversas outras personagens, em Clarice, experimentam o mais puro terror dentro de si, ao contemplar o horror do mundo, em seus detalhes mais banais e perversos. E, como sabemos, a beleza pode ser também aterrorizante, como num jardim que esconde por trás da opulência colorida e dos cheiros inebriantes morte e decomposição, ou no apartamento cheio de luz de G.H que pode ser o lar de uma barata. Tudo isso e muito mais está em Clarice Lispector e seu terror que não poderia ser chamado psicológico (Clarice tinha horror à “psicologização” de sua obra) mas algo mais fundo, uma essência, um abismo para o qual evitamos olhar a todo custo mas que, uma hora ou outra, acabará nos atraindo para dentro dele.
Passeio noturno – Rubem Fonseca
Neste conto que é um curto e eletrizante terror urbano, a primeira ideia que me ocorreu quando o li pela primeira vez é que o narrador que sai com um enorme carro para atacar pessoas pela rua poderia muito bem ser um lobisomem, aquela criatura humana mas que se transforma em pura selvageria, atacando em um frenesi de sangue para depois reassumir a forma “civilizada”. Os motoristas de hoje, mesmo que em plena luz do dia, são os lobisomens em busca da grande transformação que os afirma como um lobo alfa.
Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta nesta cidade que tem mais gente do que moscas. Na avenida Brasil, ali não podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal iluminada, cheia de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente não fazia grande diferença, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a ficar tenso, isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser mais fácil. Ela caminhava apressadamente, carregando um embrulho de papel ordinário, coisas de padaria ou de quitanda, estava de saia e blusa, andava depressa, havia árvores na calçada, de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir uma grande dose de perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em nove segundos. Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio.
Na selva urbana retratada por Rubem Fonseca, lobisomens circulam o tempo todo buscando vítimas ou estraçalhando uns aos autos. Pode ser um empresário viciado em atropelar pessoas inocentes ou empresários inescrupulosos e políticos corruptos caçando jornalistas e policiais, como em Agosto. Na vida real e nos dias de hoje, é lua cheia todo o tempo e homens-lobo correm à solta assustando vítimas com violência, pólvora, fome e doença. Rubem era também o melhor observador desse tipo tão bizarro e assustador: o brasileiro classe-média, lobisomem de pelagem castanha e que sempre segue o Alfa, deixando sangue e caos pelo caminho.
Bem, esses são apenas três exemplos mas há muitos outros que podem nos levar ao terror de cada dia, aquele que fica atrás da parede e dentro das gavetas, entre as meias, aquele terror que sabemos que existe mas que preferimos não ver, na esperança de que, dia desses, ele não venha nos assombrar.
Se você não curte o Halloween, sem problema, mas acredito que pelo menos esses contos você vai curtir.
Muitos doces e travessuras e boas leituras a todos!