Tags

, , , , , , ,

Sexta da paixão, para mim, é sinônimo de bacalhau, batatas, vinho verde ou branco e leituras para colocar em dia, ou apostar nas leituras da hora. Enquanto cunhados e sobrinhos não chegam para encher a casa de sons, fiz café, coloquei a mesa enquanto a casa ainda dormia e mergulhei em leituras, olhando as roseiras que explodem em flores na frente de casa e sentindo o vento frio da primeira manhã de outono dessas paragens, aliviando o calor implacável dos últimos tempos.

Segui lendo Bolaño e seus detetives selvagens, já na reta final. Depois de 2666, monumental, caudaloso, me espanto em ver que estou terminando mais um interminável livro desse autor chileno e suas intermináveis vozes narrativas. Há desertos, vastas fronteiras, vozes e mais vozes que se perdem na imensidão encadeando fatos, juntando pontas para depois desatá-las, um tear em moto-perpétuo que faz e ao mesmo tempo desfaz seu trabalho. Ainda escreverei melhor sobre Bolaño mas não hoje.

Arrumei a casa para as visitas que estão para chegar, bacalhau e batatas no forno, vinho verde gelado, tiro fotos das flores de manjericão e hortelã, bom sinal, de que ainda há vida, cor e cheiros em meio a tanta escuridão. Resolvo pegar meu livro de contos de Clarice Lispector e mergulho na leitura de A legião estrangeira.

Sobre esse conto escrevo mais em outra hora, no meu evangelho clariceano, ainda há muito a fazer. Mas fiquei pensando que sempre que leio Clarice fico ensimesmado, cogitando dentro de mim do quanto é possível encerrar em tão poucas linhas. Há um mundo em cada parágrafo escrito por Clarice, algo que sempre me fascina mas também me entristece um pouco, jamais vou escrever com tal intensidade. Nesse caso, resta ler e trazer um pouco mais do mundo para dentro de mim.

Nesse texto que também dá nome a um dos livros de contos da autora, seguimos Ofélia e seu crescimento às avessas: a narradora testemunha o nascimento de uma criança, a descoberta do amor pela criança e de que como, a partir de algo tão pequeno, um mundo se abre e, ao final, descobrimos que não sabemos lidar com o amor. Mais não digo, leiam o conto, como disse volto em outro momento para escrever só sobre ele.

Mas o pensamento que realmente me ocorreu quando teminei a leitura foi o de que Clarice nos mostra, não apenas nesse conto mas em muitos outros, o quanto amamos mal. Pelo menos no meu caso posso dizer, não me falta amor, tenho amores, talvez menos do que gostaria mas os tenho e são meus. Mas não levo jeito, até tento mas admito que amo desajeitadamente, amo mal, meu amor é cheio de silêncios que parecem dizer o contrário e de palavras mal colocadas, que confundem e, não raro, irritam quem eu devia agradar. Quando amo fico com a impressão de que me movo como quem anda numa loja de cristais, um terror infantil no coração, antevendo as taças que vou derrubar e não poderei consertar mais.

E, como Ofélia, às vezes não compreendo o que amo e a vastidão desse sentimento faz com que eu mate, ao menos metaforicamente, o que amo. Não é uma morte bonita, como toda morte pode ser suja e, invariavelmente, é solitária. Mas é necessária para que eu continue a me mover aos trancos e trombadas para continuar amando, para crescer, não raro voltando à infância e seu reino de terror do desconhecido.

Mas já escrevi demais, é páscoa, nesse período que simboliza a transição da morte ao retorno ou à vida eterna só posso desejar boas leituras, bons vinhos e que o amor, ainda que desajeitado, esteja sempre a nosso lado, abrindo nossos olhos ao mundo e nos libertando da prisão de uma vida sem amor.

Boa páscoa, boas leituras a todos.