Para quem já viveu a dor de ver alguém que ama partir, os momentos entre a constatação do inevitável e o encerramento da fase de luto, muitas vezes, parecem envoltos numa névoa, que só se adensa com o passar do tempo e que quando finalmente se desfaz, deixa um cenário de recomeço. Até esse ponto, contudo, apenas o que lembramos é dor e ausência, como o movimento de placas tectônicas dentro da alma e que, enquanto não se acomodam, causam abalos e deixam algumas ruínas pelo caminho.
Essas lembranças e sensações, que me remetem aos dias em que meu pai se foi e no que veio depois, ao lidar com a dor do luto que dilacera até que um dia se torne saudade, tudo isto veio-me à mente e ao coração ao ler o livro indicado pelo blog, o tocante, caudaloso e melancólico Morreste-me, pequeno romance que revelou o escritor português José Luiz Peixoto.
E ao trazer à tona as lembranças e sensações que cercaram a perda do próprio pai, o autor inicia a descrição do luto como um regresso, pois com o sofrimento desses momentos entendemos, ainda que tardiamente, que toda despedida é um retorno:
Regressei a esta terra agora cruel. A nossa terra, pai. E tudo como se continuasse. Diante de mim, as ruas varridas, o sol enegrecido de luz a limpar as casas, a branquear a cal; e o tempo entristecido, o tempo parado, o tempo entristecido e muito mais triste do que quando os teus olhos, claros de névoa e de maresia distante fresca, engoliam essa luz cruel, quando os teus olhos falavam alto e o mundo queria não mais que existir.
O regresso para a despedida, andar pelas ruas e ver que o mundo continua sua triste existência apesar de nós, apesar de nossa dor e nosso sofrimento, tudo isso intensifica o turbilhão de sentimentos e prepara para o que está por vir. E o que está por vir é descrito por José Luiz Peixoto numa prosa carregada de poesia, repleto de aliterações, repetições e ênfases como se aquele se escreve se agarrasse ao poder das palavras como refúgio e amparo na dor extrema da perda do pai. Há as lembranças de infância, do menino que via o pai como um gigante, um herói, como alguém imortal; há a constatação da doença e o otimismo que logo é substituído pelo olhar estarrecido sobre o corpo que definha sem que nada se possa fazer; há a despedida e o retorno à casa, agora tão vazia e silenciosa quanto o narrador que busca em tudo isto uma saída para a angústia, a tristeza da ausência e o conforto nas lembranças, dos pequenos prazeres e atos de pouca significância à época mas que, no momento do reencontro, mostram-se como insuportavelmente luminosas.
E, ao final, o fechar da casa agora deserta corresponde, no livro, ao reencontro da luz e o retorno para uma vida que deve seguir, enquanto aqueles que amamos e que se foram dormem:
Estava a manhã e deixei a nossa casa. Fechei as janelas e as portas, a escuridão; fechei as sombras.
Note-se o uso do verbo estar logo de início, indicando uma permanência, a manhã não chegou, a manhã estava. Como se ela também morasse naquele lugar repleto de tristeza e saudade e, finalmente, pudesse sair junto com seu morador, fechando as janelas e portas e deixando a escuridão para trás.
E não quero e não posso esquecer o que outrora senti do teu olhar. Pai, fiquei no silêncio do inverno que abraçaste.
Aqui, o inverno é da alma, a ausência de som que mostra o vazio que todos abraçamos ao encontrar o final que a todos nós aguarda.
E, no final, o desejo de um bom descanso e a saudade:
Pai. Dorme, pequenino, que foste tanto. E espeta-se-me no peito para nunca mais te poder ouvir ver tocar. Pai, onde estiveres dorme agora. Menino. Eras um pouco muito de mim. Descansa, pai. Ficou o teu sorriso no que não esqueço, ficaste todo em mim. Pai. Nunca esquecerei.
Esse final repleto de poesia, dor e saudade, só quem já perdeu alguém que ama e, principalmente, quem perdeu um pai ou mãe, é capaz de compreender e sentir tamanha dor. Mas é uma dor de saudade e que, ao final, impregna-se de uma liberdade dolorosa mas necessária para o prosseguir de nossa existência. Um dia, seremos o pai, um dia partiremos e deixaremos um filho, uma filha ou alguém que conosco se importa cheio de dor e saudade.
Enquanto isso, apreciemos a triste mas bela, belíssima literatura de José Luiz Peixoto.
Boas leituras!