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No ultimo post falei brevemente de um dos livros da poeta polonesa Wislawa Szymborska mas acho que, como fã incondicional de sua poesia, posso fazer um pouco mais. Lembrei de voltar aqui pois para falar de sua poesia pois estou lendo outro livro que remete a autores que, como Szymborska, viveram a mais emblemática guerra da historia da humanidade e dela não se desvencilharam até o último de seus idias. O livro a que me refiro é É isto um homem?, as valiosas memórias do italiano Primo Levi de seus dias no campo de concentração de Auchswitz, mostrando que o ódio, na melhor das hipóteses, construiu um sistema. Apesar da dor e da morte, Levi nos lembra o tempo todo que o ser humano constrói mundos para não sucumbir ao horror da existência, injeta ordem no caos.
Tal como a poesia. Os escritores do Holocausto como Levi e Szymborska tocam o âmago de grandes questões humanas desde sempre mas que, em momentos de tensão e violência extremas, aparecem com muito mais nitidez. A própria autora polonesa, ao negar o rótulo de existencialista em uma entrevista, fala do efeito que simplicidade e ironia que busca em sua poesia. E afirma:
O rótulo é lisonjeiro, mas falso. Não cultivo nenhuma grande filosofia; só uma modesta poesia. Os existencialistas são tremendamente sérios, não gostam de brincar. Não creio que essa descrição se aplique a mim. Sempre encaro a seriedade excessiva como algo meio ridículo […] No poema tento conseguir o efeito que na pintura se chama chiaroscuro. Gostaria que o poema contivesse o sublime e o trivial, as coisas mais tristes e cômicas – lado a lado, misturadas.
E volto a Primo Levi para dizer que em É isto um homem? Esse efeito de claro e escuro, essa convivência entre luz escuridão aparece o tempo todo, com o homem em seu estado mais degradante injetando normalidade, dividindo-se em grupos definidos, mostrando avareza e mesquinhez em um momento, carinho e solidariedade em outro. Penso que todos vamos morrer, pode ser em um campo de concentração ou escorregando em uma banheira, ou engasgando com uma azeitona. Não é como se morre, importa mesmo é a humanidade que nos resta. E a grande literatura mostra o sublime e o trivial o tempo todo em nossas vidas, na poesia e no relato pessoal.
E se a poesia de Swymborska é hoje tão popular no Brasil e vende tanto deve ser, acredito, pelo momento em que vivemos, em que a escuridão das ideias tenta, a todo custo, estabelecer-se no poder. Uma das trincheiras de resistência em tempos sombrios como estes é e sempre será a poesia. Tenho duas coletâneas da grande poeta polonesa, poemas e um amor feliz e, claro, recomendo a leitura de ambas, todo dia um pouco, de uma vez, em ordem ou completamente fora de ordem, não importa. Leia Szymborska e leia Primo Levi também para constatar como, ao contrário do que afirma a sabedoria comum, o ódio também constrói, às vezes coisas muito belas.
Para finalizar, alguns trechos do poema O ódio, de Szymborska, vejam se não cala muito fundo nestes tempos de ódio em estado puro em que vivemos:
Vejam como ainda é eficiente,
como se mantém em forma
o ódio no nosso século.
(…)
Ah, estes outros sentimentos –
fracotes e molengas.
Desde quando a fraternidade
pode contar com a multidão?
Alguma vez a compaixão
chegou primeiro à meta?
Quantos a dúvida arrasta consigo?
Só ele, que sabe o que faz, arrasta.
Capaz, esperto muito trabalhador.
Será preciso dizer quantas canções compôs?
Quantas páginas de história numerou?
Quantos tapetes humanos estendeu em quantas praças, estádios?
Não nos enganemos:
ele sabe criar a beleza.
São esplêndidos seus clarões na noite escura.
(…)
Pronto para novas tarefas a cada instante.
Se tem que esperar, espera.
Dizem que é cego. Cego?
Tem a vista aguda de um atirador
e afoito olha o futuro
— só ele.