Ler um livro e ficar pensando no que foi lido; esses são os livros bons, as ideias que levam a outras ideias, que levam a outras ideias. A literatura não é a vida, mas como a vida é também um deserto sem fim.
E fico aqui pensando em desertos quando termino de ler No teu deserto, do português Miguel Sousa Tavares, uma pequena joia, linda e triste, o amor incompleto, a travessia do deserto, aquele mar de areia à frente e aquele que nunca termina na alma da gente. Livro que deixa a gente mais triste ainda quanto termina. Mas tudo termina, menos o deserto.
A melancolia linda e o deserto remetem a um filme lindo e triste que amo, Paris Texas, de Wim Wenders, que comento sempre que tenho a oportunidade. No livro, o par central atravessa junto o deserto e suas vidas, separadas, nunca mais serão as mesmas. No filme, um homem solitário se reencontra na imensidão do deserto e enfrenta uma perda. Adoro filmes com deserto, fico fascinado e, quem sabe, ainda conheço um pessoalmente. Mas o deserto dentro de mim, esse eu desconfio que não explorei nem a décima parte.
E desconfio, ainda, que nos dias em que vivemos, muitos sequer puseram os pés na areia do seu deserto, nem conhecem a textura sob os dedos, tao atarefado que andam com suas vidas cheias de som e fúria. Achamos que nos conhecemos tanto das coisas por nossas certezas de rede social, mas nem temos noção do deserto de nossa ignorância, que amamos com um desvelo obstinado, e que fazemos de tudo para proteger. Algumas pessoas nunca entrarão no próprio deserto, pois andar sob esse sol ofuscaria a vista de tal forma que não suportaríamos a claridade, como a epifania de nossa insignificância.
Mas já me alonguei, queria mesmo era destacar um trecho do fim do livro, que diz muito sobre o que somos hoje:
“Hoje já ninguém vai ao nosso deserto, Claudia. Os fundamentalistas islâmicos, como os de Laghouat, tornaram-se sanguinários e incontroláveis e os próprios tuaregues revoltaram-se contra o poder de Argel.
Mas a razão principal nem é essa. A razão principal é que já não há muita gente que tenha tempo a perder com o deserto. Não sabem para que serve e, quando me perguntam o que há lá e eu respondo “nada”, eles riscam mentalmente essa viagem dos seus projectos. Viajam antes em massa para onde toda a gente vai e todos se encontram. As coisas mudaram muito, Claudia! Todos têm terror do silêncio e da solidão e vivem a bombardear-se de telefonemas, mensagens escritas, mails e contactos no Facebook e nas redes sociais da Net, onde e oferecem como amigos a quem nunca viram na vida. Em vez do silêncio, falam sem cessar; em vez de se encontrarem, contactam-se, para não perder tempo; em vez de se descobrirem, expõem-se logo por inteiro: fotografias deles e dos filhos, das férias na neve e das festas de amigos em casa, a biografia das suas vidas, com amores antigos e actuais. E todos são bonitos, jovens, divertidos, “leves”, disponíveis, sensíveis e interessantes. E por isso é que vivem essa estranha vida: porque, muito embora julguem poder ter o mundo aos pés, não aguentam nem um dia de solidão. Eis porque já não há ninguém para atravessar o deserto. Ninguém capaz de enfrentar toda aquela solidão.”
Parece incongruente falar mal de redes sociais quando a usamos, mas não é, porque estamos fazendo isso errado: não ha debate de ideias, só tentativa de doutrinação; não existe a arte do encontro, apenas a ilusão de proximidade; tanta gente à nossa volta nesse universo virtual, mas nunca estivemos tao sós.
Precisamos entrar no deserto de nossa alma, sentir a areia sob os pés, apurar o ouvido e encontrar o sussurro do vento que move as dunas e embala o silêncio tao necessário e que nos recusamos a sentir. Leiam, abram livros, escutem o que eles dizem e o deserto começa a se abrir diante de nôs. Vasto, inexplorado, lindo.