Uma notícia relacionada à literatura chamou minha atenção hoje e não há como não comentar: a UNICAMP adicionou como uma das leituras para o próximo vestibular a versão em livro do álbum “Sobrevivendo no inferno” dos Racionais MC’s e tal fato, claro, ainda vai provocar muita discussão.
A matéria, que você pode ler aqui menciona que entre os alunos a inclusão foi bem recebida mas que nas redes sociais, como sempre, o debate não foi tão civilizado. Nesse ponto pouco importa se você gosta ou não de rap, se gosta ou não de Mano Brown e seus parceiros, o que importa, acredito, é perguntar: o que é cultura?
E aqui falo de cultura em um sentido mais estrito. O que é um bom livro? Boa música? Temos nossos gostos pessoais e eles podem se enquadrar nos gostos de um grupo a que pertencemos mas esse gosto deve ser levado em conta ao estudarmos algo que deve ser levado a todos?
Em tempos de cultura ameaçada e de escola sem partido como ideia a ser imposta aos alunos, ainda vemos esperança em uma universidade modernizar suas ideias e olhar para uma cultura que existe e para a qual não podemos virar o rosto. Os Racionais mostram as entranhas da periferia pela qual passamos como nossos carros correndo e ao largo, vidros erguidos e ar condicionado ligado no último.
Esse processo de inclusão de outras formas literárias é um processo que anda engatinhando no Brasil. Ainda estamos presos, de uma forma geral, ao eurocentrismo do século XIX e a literatura brasileira desse período e da primeira metade do século XX, e isto não foi bom para os estudantes. Nada contra ler e continuar lendo Machado de Assis, José de Alencar, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Drummond, Bandeira, dentre tantos outros que adoro e sempre comentei aqui neste espaço. Mas posso dizer sem medo de errar que manter determinados formatos e exigências dos alunos que lerão obras para o vestibular obedece não apenas a um gosto estético mas, também, a um plano de manutenção do status quo social.
A cultura trabalhada como um projeto estético que encobre uma ambição de dominação e, muitas vezes, do extermínio de vozes dissidentes, não é uma novidade na história da humanidade. O quadro mais aterrador nesse sentido você pode conferir no aclamado Arquitetura da destruição, mas esse projeto não precisa ser tão evidente: no decorrer de décadas o ensino brasileiro de literatura foi dominado por uma submissão a um cânone literário pré estabelecido por catedráticos que se projetaram no início do século XX e que, nada obstante a inegável cultura que apresentavam, também tinham dificuldades para se atualizar, falaram muito de autores mortos e não olharam para os vivos. Nossa sociedade, que primeiro almejava ser francesa para depois se espelhar nos EUA, esqueceu-se de olhar para a própria cultura de uma maneira geral.
Enfim, a discussão é longa para caber no espaço de um post mas uma coisa posso afirmar: até a escolha dos livros que o aluno terá que ler para prestar vestibular obedece a uma demanda do estrato dominante da sociedade. Ainda há quem ache bonito ter Olavo Bilac e Raquel de Queiroz na lista de leituras mas se revolte a crueza de um Racionais na lista.
Cultura, portanto, são os outros, como diria Terry Eagleon, em seu ótimo livro A ideia de cultura, leitura mais que recomendada. Vejam o que ele afirma:
Não é, na verdade, apenas a cultura que está aqui em questão, mas uma seleção particular de valores culturais. Ser civilizado ou culto é ser abençoado com sentimentos refinados, paixões temperadas, maneiras agradáveis e uma mentalidade aberta. É portar-se razoável e moderadamente, com uma sensibilidade inata para os interesses dos outros, exercitar a autodisciplina e estar preparado para sacrificar os próprios interesses pelo bem do todo.
…
A palavra “cultura”, que se supõe designar um tipo de sociedade, é de fato uma forma normativa de imaginar essa sociedade. Ela também pode ser uma forma de alguém imaginar suas próprias condições sociais usando como modelo as de outras pessoas, quer no passado, na selva, ou no futuro político.
Vejam só como Eagleton coloca o dedo na ferida: nossas leituras são escolhidas para vermos o mundo do modo como querem que vejamos e não como realmente é. Lemos O Guarani pois ele mostra um índio idealizado, com ares de super-herói, vivendo em harmonia com o homem branco e a ele submetido, incluindo uma conversão ao cristianismo. Já quando Mano Brown canta o cotidiano da periferia de São Paulo e das prisões para onde vão muitos negros pobres que viviam nessa mesma periferia, muitos preferem dizer que esse tipo de música não presta e que está “ensinando” o jovem a ser criminoso, o mesmo tipo de raciocínio fantasioso de quem acredita que assistir a O poderoso chefão vai fazer alguém se tornar gângster.
Essa ideia de ver pela literatura um espelho de nossos costumes vestindo pessoas diferentes também me remete a Edward Said e seu livro Orientalismo, outro livro essencial para entender nosso sistema cultural e as escolhas que fazemos, pois nossas leituras podem indicar não apenas quem somos, mas também quem gostaríamos que os outros fossem.
Que as universidades, com sua independência, continuem a fazer com que os alunos observem todas as nossas periferias e sua rica cultura, a qual tanto ignoramos em nome de ideal que não deveríamos querer atingir.
Então, curta o som, leia o livro!
https://youtu.be/YLa77FGfkY8