Talvez seja oportuno voltar a pregar o evangelho clariceano nesse espaço pois, em uma semana, celebra-se o centenário de Clarice Lispector, essa escritora que deixou esse mundo em 1977 mas que, de fato, nunca nos deixou pois permanece mais viva que nunca em suas obras e, mesmo, nas frases de rede social que pipocam pela rede e cuja autoria é sempre atribuída a ela. Algumas com uma bela cara de autoajuda e que, quem conhece a obra dela, certamente já sabe que não foi ela quem disse ou escreveu. Mas essa é outra história, para uma conversa de bar, um dia quando essa loucura pandêmica terminar. Por isso vamos falar de mais dois contos, nessa série em que o blog comenta cada um dos contos em ordem cronológica.
E destaquei a questão da ordem cronológica pois os dois contos que serão aqui comentados pertencem a duas coletâneas diferentes mas um fio temático as liga, embora a abordagem seja diferente e, quem sabe, complementar, como dois lados de uma moeda. Então, vamos começar?
Mais dois bêbedos é o conto que encerra a coletânea Primeiras histórias e que, bem de acordo com o nome, mostra uma Clarice ainda experimentando temas, modos de narrar, tateando no escuro de um cômodo narrativo um tanto hostil e perigoso. Mas nossa maior escritora não tem medo do escuro e não se faz de rogada: esse conto sombrio que encerra a coletânea é arrebatador, assustador e, ao mesmo tempo, prosaico em sua temática. A conversa em uma mesa de bar, com Clarice, toma a forma de uma tour de force narrativa, uma descida etílica ao inferno, ao vazio da existência.
Se tem algo que não esqueço é o que Benedito Nunes, um dos autores que melhor escreveu sobre literatura no Brasil e grande estudioso de Clarice (dele li O dorso do tigre e quem se interessa por Clarice não pode deixar de ler), disse sobre O lustre, segundo romance da autora: a literatura clariceana ecoa a total ausência de Deus. Não se trata de ateísmo ou de agnosticismo mas, pura e simplesmente, do vazio da existência, da falta de sentido da vida e da destruidora sensação de que nós passaremos e as eras se seguirão, umas as outras, com ou sem a nossa presença.
Em Mais dois bêbedos essa sensação perpassa a narrativa, na figura do narrador que tenta, a todo custo, não apenas despertar fisicamente o outro bêbado que se estira sobre a mesa de um bar mas, principalmente, desperta-lo para o absurdo da vida e da existência. Aqui aplica-se a metáfora da força incontrolável que investe contra o objeto irremovível. Duas forças assim tendem a se anular e é o que acontece mas isso não impede o narrador de partir para o ataque:
Recusava-me o conceder-lhe o direito de ter uma alma própria, cheia de preconceitos e de amor por si mesmo. (…) Eu possuía o direito de ter pudor e de não me revelar. Era consciente, sabia que ria, que sofria, lera obras sobre o budismo, fariam um epitáfio sobre meu túmulo quando morresse. E embebedava-me não puramente, mas com um objetivo: eu era alguém.
E o narrador admite que procurava alguém para revelar suas dolorosas verdades sobre a vida, a morte, o vazio da existência ou, em suas palavras, alguém que precisava de mim, que não estivesse gravitando em torno de seu próprio mundo e nele encerrado, alguém disposto a ouvir uma palavra, a salvação e seu reverso. Pois ele descobre que seu interlocutor tem o filho doente e não perde a oportunidade: em um parágrafo repleto de angústia descreve os estertores e a morte da criança diante da mãe desesperada e a impotência de quem, à mesa de uma bar, nada pode fazer para mudar a situação. Depois do sofrimento e da morte, há apenas o vazio, para quem se vai e para quem fica:
Dizem: “É preciso cuidar do enterro.” Ela responde: “Pra quê? Pois se ele já morreu.”Dizem: vamos chamar um padre.” Ela responde: “Pra quê? Pois se ele já morreu.”
O bêbado, adormecido, parece mal prestar atenção no que ele diz mas isso não o faz desistir, pelo contrário, o ímpeto redobra e passa-se, então, do vazio de uma morte para o vazio de toda uma existência, no diálogo mais impressionante do conto:
“Escute-me, amigo, a lua está alta no céu. Você não tem medo? O desamparo que vem da natureza. Esse luar, pense bem, esse luar mais branco que o rosto de um morto, tão distante e silencioso, esse luar assistiu aos gritos dos primeiros monstros sobre a terra, velou sobre as águas apaziguadas dos dilúvios e das enchentes, iluminou séculos de noites e apagou-se em seculares madrugadas… Pense, meu amigo, esse luar será o mesmo espectro tranquilo quando não mais existirem as marcas dos netos dos seus bisnetos. Humilhe-se diante dele. Você apareceu um instante e ele é sempre.”
Quando parece que a embriaguez leva ao torpor e ao distanciamento da realidade, é nesse instante que, muitas vezes, a realidade se abre em todo o seu horror diante de nossos olhos, é demais, é uma epifania, é a luz que cega, é isso que o narrador quer dizer, despertar do torpor é tarefa impossível e só é possível desejar uma morte em vida:
“Ouça, vou dizer mais: eu queria morrer vivo, descendo ao meu próprio túmulo e eu mesmo fechá-lo, com uma pancada seca. E depois enlouquecer de dor na escuridão da terra. Mas não a inconsciência.”
Ecos de Edgar Allan Poe em uma mesa de bar do Rio de Janeiro, do Brasil, do mundo. No momento em que o espetáculo do horror da existência parece despertar seu interlocutor, ainda que de forma débil, o conto termina abruptamente, o primeiro final em aberto de um conto de Clarice, deixando um nó na garganta, a sensação de incompletude que tira o chão de quem lê. Esse conto que encerra primeiras histórias pode não ser o melhor mas é, sem dúvida, o mais supreendente.
E Devaneios de uma rapariga, conto que abre a coletânea Laços de família, de certa forma se liga a este, embora o ângulo mude totalmente e nos traga um final mais comum nos contos clariceanos.
Mais uma vez a personagem principal, narradora, não tem nome mas já sabemos que é casada, com um marido trabalhador e decente e, ainda, muito infeliz. Todo o vocabulário utilizado pela autora e por seu marido indicam que trata-se de um casal português, de imigrantes que fizeram a vida, como se diz, no Brasil. Assim, o deslocamento já se inicia neste ponto e, para a narradora, somente se aprofunda, enquanto o seu interior fervilha em um ambiente estéril à sua volta.
E seu verdadeiro eu, aquele interior cheio de tensão sexual e fúria vem à tona em estado de embriaguez, onde ela se revela em parágrafos carregados de tensão erótica:
E se lhe estavam brilhantes e duros os olhos, se seus gestos eram etapas difíceis até conseguir enfim atingir o paliteiro, em verdade por dentro estava-se lá muito bem, era-se aquela nuvem plena a se transladar sem esforço. Os lábios engrossados e os dentes brancos, e o vinho a inchá-la E aquela vaidade de estar embriagada a facilitar-lhe um tal desdenho por tudo, a torná-la madura e redonda, como uma grande vaca. (…) Mas as palavras que uma pessoa pronunciava quando estava embriagada era como se estivesse prenhe – palavras apenas na boca, que pouco tinham a ver com o centro secreto que era como uma gravidez.
Em tais parágrafos vê-se a associação da liberdade que a embriaguez proporciona com a sensação de plenitude sexual e orgânica, com a sensação de poder refletida na luxúria e na fertilidade. Em contraposição ao narrador de Mais dois bêbedos, não é um vazio, é um excesso, de vida e de desejo em contraste com vida asséptica e cheia de etiquetas de comportamento que a cerca.
Sua carne alva estava doce como a de uma lagosta, as pernas duma lagosta viva a se mexer devagar no ar. E aquela vontade de se sentir mal para aprofundar a doçura em bem ruim. E aquela maldadezita de quem tem um corpo.
A vingança da narradora contra a sociedade era esta, sentir-se plena, desejada pelo chefe do marido no restaurante, sentir-se superior à moça loira e magricela na mesa ao lado, chamando a atenção de seu parceiro. Ou será que tudo isto está apenas na mente dela? E se estiver, por qual motivo não seria, também, real? Com o tesão vem o poder, a sensação de sentir-se impune e protegida do que sente por sua posição social:
E se quisesse podia permitir-se o luxo de se tornar ainda mais sensível, ainda podia ir mais adiante: porque era protegida por uma situação, protegida como toda gente que atingiu uma posição na vida.
Como o desejo, contudo, essa sensação não dura muito pois depois do restaurante e já em casa, a narradora sente o vazio, a tristeza, como a sensação depois de um orgasmo mas sem paz ou bem-estar. É a náusea da vida (também fisicamente manifestada, como acontece muito na literatura clariceana), a tristeza da existência. Aqui, chegamos ao ponto em que este conto e o anterior se interceptam. Talvez a narradora, por um instante, depois de tanta opulência, tenha pensado em se enterrar viva e definhar de agonia nas entranhas da terra.
Mas o que lhe vêm à mente, ao final, é tomar conta da casa, faxinar furiosa e impiedosamente a casa que ela julga suja, num frenesi que se assemelha a das beatas que se castigam pelos desejos incontroláveis que sentem e que parecem querer prestar contas ao mundo, mesmo que nunca o mundo lhes tenha pedido.
São dois contos impressionantes, luz e trevas sobre um mesmo assunto, um encerrando um ciclo, outro iniciando, mas repletos da ausência de Deus de que Benedito Nunes fala. E, com Clarice, a ausência de Deus é preenchida pelas contradições do humano.
No próximo capítulo de nosso evangelho clariceano falarei de Amor, um dos mais famosos contos da escritora. Até lá, boas leituras.
Ave, Clarice.