Quem ainda tem a paciência de acompanhar esse espaço aleatório e esta escrita de ritmo errático sabe que venho analisando contos de Clarice Lispector, no meu projeto inconstante do evangelho clariceano; tenho apresentado minhas analises na ordem de publicação da coletânea organizada por Benjamin Moser para a editora Rocco. Sei que estou devendo algumas resenhas mas voltaremos a elas em um futuro próximo.
Por hoje, contudo, quero falar de um conto e um livro que se conectaram na minha mente assim que os li, conto de Clarice do século XX, o livro da atualidade, separados pelo tempo, unidos por ideias que até hoje nos assombram. Nos dias que vivemos, nos assombram como nunca.
O livro, cuja leitura apenas iniciei mas que já me fisgou é Desaparecer de si, do francês David Le Breton, na qual o sociólogo e autor de obras como Adeus ao corpo e Conduta de Risco fala de um dos grandes sintomas da atualidade: a vontade de desaparecer, de riscar sua existência do mapa geral da existência humana, de tornar-se um grande branco na constelação das almas.
É a pessoa assumindo a persona, nas palavras de Breton, é o ser humano assumindo uma existência mas não uma vida, é apenas ser, sem coexistir. No mundo de hoje, de exigências de hiperconexão e a obrigação inescapável de felicidade, mostrando sua bem aventurança nas redes sociais, o ato de desaparecer de si assume um tom de resistência ao mundo e sua loucura.
Breton chama esse vazio, esse autoexilio, de branco:
O branco é essa vontade de desacelerar ou de deter o fluxo do pensamento, de finalmente acabar com a necessidade social de sempre compor um personagem de acordo com os interlocutores presentes. O branco é uma busca de impessoalidade, uma vontade de tão somente ser considerado de forma neutra.
E esse branco me remete ao conto de Clarice Lispector: em Preciosidade somos apresentados a uma personagem que, como boa personagem clariceana, tem uma existência muito mais intensa por dentro do que por fora. Ao mundo exterior ela manifesta sua persona feia, neutra, lutando ferozmente para passar despercebida: quase uma desexistência. No caminho para a escola, na própria escola, diante de colegas e professores, por muito tempo ela quase consegue esse objetivo de desaparecer de si. Quase, pois um acontecimento revela a aterradora verdade: ela existe, ela é percebida, basta estar vivo, basta um olhar, basta ser tocado para que o projeto de desparecimento fracasse.
Não se mover é o que importa, pensou de longe. Não se mover.
Depois de descobrir que é percebida, essa descoberta que é como uma epifania às avessas se mostra mais do que ela pode suportar:
Foi para o lavatório. Onde, diante do grande silêncio dos ladrilhos, gritou aguda, supersônica: Estou sozinha no mundo! Nunca ninguém vai me ajudar, nunca ninguém vai me amar! Estou sozinha no mundo!
(…)
Ela possuía tao pouco, e eles haviam tocado.
Ela era tão feia e preciosa.
Em minhas anotações sobre esse magnífico conto, minha letra garranchada me contou que se tratava de uma ode ao vazio, ao vazio da existência e da profunda e desesperadora solidão de quem toca essa matéria sem forma. Até o desejo é vazio, a violência, a violação, os atos que violam quem somos, esse caos físico e moral é barulhento mas é vazio e o som, sabemos, não se propaga no vácuo.
Le Breton sabe disso, do branco; Clarice Lispector sempre soube, muito antes de todos. Ela sabe que continuamos gritando nosso desespero para os ladrilhos brancos. É forte, é esclarecedor, é revelador. Por isso é doloroso, por isso tudo é necessário. Leiam Le Breton para entender o presente, leiam Clarice para entender porque desde sempre somos assim, amantes do vazio.