UM CADÁVER
Quando ele se sentou junto ao meio-fio, naquela manhã ensolarada, parecia não ter a mais vaga ideia do porquê daquele gesto. Talvez porque, como muitas coisas na vida, com o vagar das horas e o pulsar da existência, uma força predeterminada e determinante que se pode chamar acaso guie cada ser vivente em direção ao imenso vazio, o maravilhoso buraco negro, a liberdade indescritivelmente bela, maravilhosa e assustadora, é a face de deus que não se consegue ou não se quer olhar.
Mas foi isso que ele fez, sentou e esperou, tinha um horário para chegar ao trabalho, explicações a dar ao chefe que odiava, por pura inveja, o olhar dos colegas de trabalho a quem desprezava na mesma proporção em que era desprezado, o café com gosto de arsênico que ataca o fígado e pode causar insuficiência hepática, na verdade não se sabe se era isso que ele pensava, os fatos são narrados, os pensamentos são possíveis, vamos enumerá-los, pois.
E ele continuou sentado, esperando pelo momento que finalmente aconteceu, o veículo que fez a curva, bruscamente, os pneus cantando, o cachorro que pareceu ter se materializado, surgido do nada, o impacto que traz o som que traz o momento em que se rompe o esgarçado tecido da realidade, mostrando as entranhas, o veículo que segue seu trajeto em alta velocidade, como se não tivesse nada com esse rompimento, o animal finalmente jogado na sarjeta, a poucos metros dele.
E finalmente aquele momento em que a realidade foi rompida materializou-se e ele pode ver, por um breve átimo de segundo, o cachorro deitado, as patas erguidas ao céu como em uma última prece, o torax aberto e as vísceras expostas, formando o que poderia ter parecido a ele um desenho, um mosaico, uma escultura, uma obra para ser exposta em museu, pois ali estava exposta a vida, o que somos, um emaranhado de sangue e nervos, tudo aquilo se mexendo e lutando pela vida uma última vez.
E mais finalmente, aquele instante que indefinível pareceu uma era chegou aos olhos que o encaravam vazios e fora das órbitas, quando finalmente seus pensamentos e sensações se abriram ao público, mas veio a decepção: ele não teve uma epifania, ele não teve um instante de revelação, ele não teve um vislumbre do outro lado da vida, ele não viu espíritos, ele não viu o futuro, ele não viu ou sentiu absolutamente nada. Apenas reparou, com uma leve satisfação, que a cauda do cachorro ainda se mexia, mesmo após tudo o mais lhe parecer morto.
Súbito, ocorreu-lhe que não sabia porque havia feito aquilo, ali parado vendo um cachorro morrer, levantou-se e caminhou apressado, já pensando na explicação que daria ao chefe.