Desde já me desculpando pela demora em atualizar este nosso projeto, vamos ao que interessa, vamos falar de Obsessão, o segundo conto escrito por Clarice Lispector.
E a primeira, embora pouco relevante diferença em relação a O triunfo é justamente no tamanho: a estreante e jovem contista parece desacelerar os batimentos e desdobra um maior numero de camadas nessa narrativa sobre o percurso de Cristina, uma personagem que executa nesse conto brilhante com ares de sonho e despertar um caminho que vai da adoração quase religiosa ao vazio, uma ascese às avessas.
Outras diferenças: em O triunfo a narrativa se desenrola no plano da ação, embora de maneira comedida e em lento mas inexorável avanço. Em Obsessão, o narrar caminha pelo campo movediço da memória, um pântano de incertezas e sensações, matéria moldável e bem menos confiável, ainda assim mostrando um leque muito maior de possibilidades de exploração de todas as frestas que a narrativa possibilita.
E assim, afirmando “Agora que já vivi o meu caso, posso rememora-lo com mais serenidade.”, dessa forma a personagem principal desse conto inicia uma narrativa que possui outra caraterística intensamente explorada por Clarice em suas obras: a liquidez das personagens e da própria narrativa em si; em O triunfo a água é elemento essencial e libertador; em O lustre, segundo romance de Clarice, a narrativa se inicia afirmando sobre Virgínia que ela ” seria líquida por toda a vida.”.
Esta liquidez, esse mundo de incertezas, lançam a narradora desse conto em direção a um vazio em sua vida de casada com Jaime que somente o encontro com Daniel fará com que saia do ritmo monocórdico que se reflete no próprio modo de narrar, algo muito comum em Clarice, personagens que refletem no modo de narrar um modo de viver, as repetições tão comuns no universo Clariceano quase como um modo de sufocar o leitor. E é nesse clima claustrofóbico que a narradora se encontra e, ao mesmo tempo, situa o leitor, que pode sentir o vazio se apoderando dele como se estivesse a vivenciar o narrado. Clarice faz vida e literatura se encontrarem em um espaço de pura abstração.
É o spleen herdeiro do simbolismo sobre o qual se ergueria a geração de Clarice e tantos outros escritores, como também faria Marguerite Duras, por exemplo, cujos ecos escuto quando leio o que Clarice escreve (não apenas este conto) e comparo com Moderato cantabile, um representante do noveau roman, relatando o vazio existencial da vida e do casamento e a busca de uma relação extraconjugal.
Mas com Clarice sempre aprendemos que a liberdade tão buscada também pode ser uma prisão e é isto que Obsessão revela, ao descrever o modo como a relação da personagem principal com Daniel se desenvolve. Como em O triunfo, Daniel subjuga a personagem principal, no início, pelo fascínio intelectual que exerce. Mesmo ciente do que lhe poderia acontecer (Daniel era o perigo, e para ele eu caminhava), ela segue os ensinamentos de Daniel e uma relação doentia se desenvolve.
No início, tudo é revelação e deslumbramento, como se um novo universo se abrisse diante de seus olhos: E, sobretudo, pela primeira vez eu, até então profundamente adormecida, vislumbrava as ideias. Nesse ponto, as comparações entre o estado animalesco no qual ela se considerava imersa diante de Daniel são inevitáveis:
Minha boca estava estupidamente aberta, “meus olhos tolos, atestando minha ingenuidade de animal”…Era assim que Daniel falava comigo.
Mas a narrativa, pendular como a narrativa da memória, revela também o processo de compreensão da personagem, e seu caminho da submissão e ignorância até a plena compreensão, o conhecimento que, como costuma ocorrer em tantas narrativas clariceanas, dá-se através da revelação súbita e inesperada, da epifania.
Hoje compreendo-o. Tudo lhe perdoo, tudo perdoo aos que não sabem se prender, aos que fazem perguntas. Aos que procuram motivos para viver, como se a vida por si mesma não se justificasse.
E ela, que sentia muito, que se postava em seu estado bruto diante de Daniel (recebeu a frase com desagrado, como sempre em que “minha intensidade de animal o chocava”), passa, a partir desta e de outras pequenas descobertas, a compreender Daniel e, finalmente, a enfrenta-lo, percorrendo o caminho da ascese invertida mencionada, passando da adoração e submissão ao desprezo e ao esvaziamento da relação, até o melancólico fim. A violência, aqui, é moral e amor físico quase que inexistente, a tensão erótica, sensual, presente sem que se possa concluir de que o sexo esteja presente. Cristina descobre que, Daniel, afinal, é o elo fraco da corrente, desta vez de forma muito mais profunda e densa do que a fugaz descoberta de Luísa em O triunfo.
Outro elemento importante que pode ser notado neste conto é o que Benedito Nunes, estudioso de Clarice, com base em Heidegger, chamava em seus textos de absoluta ausência de Deus, ou seja, no momento da revelação, quando a epifania se abre em todo o seu esplendor diante dos olhos de Cristina, não é o conhecimento, mas o vazio que toma seu assento. Daniel era o deus quem a narradora primeiro devota uma cega adoração, para depois, cada vez mais perto do fim, devotar todo o seu desprezo, o que a joga na solidão e no vazio. O homem se torna Deus quando se despe de sua humanidade e se veste de seu habitual orgulho e arrogância.
Não refletia sobre a situação, mas quando a analisava alguma vez era sempre do mesmo modo; vivo com ele e é tudo. Permanecia junto do poderoso, do que sabia, isso me bastava.
Deus, em Clarice, é nada além de desprezo.
O final da relação vem de forma melancólica e anticlimática, da adoração à loucura, ao ódio e, afinal, à indiferença, todo esse percurso é condensado nos instantes finais do conto:
__ Os encarcerados – disse Daniel tentando emprestar um tom ligeiro e desdenhoso às palavras. Foi o último instante de simpatia que tivemos juntos.
Houve longuíssima pausa, daquelas que nos mergulham na eternidade. Tudo parara ao redor de nós.
Com um novo suspiro, retornei à vida.
__ Vou embora.
Ele não teve um gesto.
Caminhei para a porta e na soleira estaquei novamente. Via-lhe as costas, a cabeça escura erguida, como se olhasse para frente. Repeti, a voz singularmente oca:
__ Vou embora, Daniel.
Esse trecho mostra de maneira brilhante o mergulho final de Cristina no vazio, a liberdade de uma relação obsessiva e doentia ao preço de uma vida, pois a narradora volta para Jaime, o marido que representa sua ligação com o terreno e o mundano, finalizando:
Quanto a mim, contínuo.
Já agora sozinha. Para sempre sozinha.
Repare na profundidade das camadas de significação introduzidas por Clarice: a luta por libertar-se do vazio e do tédio que é viver busca seu caminho em uma paixão obsessiva e termina por aprisiona-la de forma mais angustiante do que qualquer outra busca; livrar-se dessa busca liberta mas, também, pode significar, finalmente, pular no abismo para o qual se estava olhando e que, perigosamente, encarava de volta.
Muito mais poderia ser escrito mas essas são minhas impressões, que eu espero que despertem o interesse de quem ainda não leu esse conto imperdível.
No próximo capítulo volto com O Delírio.
Ave, Clarice.